Resumo

Neste artigo, procuro problematizar a crítica de Erich Fromm à cultura do capitalismo contemporâneo. Para tanto, faço uma releitura especialmente, mas não apenas, de uma de suas principais obras maduras, o livro Psicanálise da sociedade contemporânea (The sane society), no qual o autor sedimenta seu projeto analítico de uma “psicanálise humanista”. Na primeira parte o artigo reconstrói, através da ideia de “patologia da normalidade”, a crítica de Fromm aos fundamentos culturais do capitalismo contemporâneo. Na segunda parte, a reconstrução é levada adiante através dos conceitos de “caráter social” e “alienação”, de modo a compreender como o capitalismo tardio do século XX aprofunda, como nunca antes, uma cultura anti-humanista. Na conclusão, procuro argumentar como a obra de Fromm pode ser de grande valia para a compreensão dos problemas tanto individuais quanto coletivos da atualidade.

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A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista contemporânea

Fabrício Maciel* 

Sociologias vol.22 no.55  – Porto Alegre Sept./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.1590/15174522-95752

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

*Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil

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Erich Fromm é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da modernidade. Sua vasta obra é de fundamental importância, tanto para o desenvolvimento da psiquiatria e psicologia contemporâneas quanto para a filosofia e as ciências sociais. Neste artigo, eu gostaria de explorar alguns aspectos do seu pensamento, com o objetivo de demonstrar como este é decisivo para a construção de uma crítica à cultura do capitalismo contemporâneo. Para tanto, vou recorrer especialmente, mas não apenas, ao seu livro Psicanálise da sociedade contemporânea (1970) (The sane Society, 1955), sem dúvida uma de suas principais obras. O livro é a parte final de uma trilogia, que se inicia com O medo à liberdade (1974) (Escape from freedom, 1941) e tem como sequência Análise do homem (1964) (Man for himself, 1947). Neste seu projeto analítico, que encontra seu auge no terceiro livro, Fromm leva a cabo a sua tentativa de compreender as razões do mal-estar existencial predominante na modernidade, atentando para suas consequências políticas negativas.

A trilogia faz parte da obra madura de Fromm. Em O medo à liberdade (1974), ele demonstra que os movimentos totalitários apelavam para o anseio de fugir à liberdade conquistada na modernidade na qual o indivíduo, liberto das amarras medievais, não estava em liberdade para construir uma vida significativa baseada na razão e no amor, procurando, por isso, a segurança na submissão a um líder, uma raça ou um Estado. Também em Análise do homem (1964), Fromm procurou tratar de um mecanismo psicológico específico, no quanto isso pareceu condizente com seu objetivo principal. No primeiro livro da trilogia, ele enfrenta principalmente o problema do caráter autoritário, como no caso do sadismo e do masoquismo. No segundo livro, ele vai além e procura desenvolver a ideia de várias orientações de caráter, substituindo o sistema freudiano do desenvolvimento da libido por uma concepção da evolução do caráter em termos interpessoais (Fromm, 1964). Nesse livro, definido por ele mesmo como uma “psicologia da ética”, o autor procurou discutir o problema da ética, das normas e dos valores como condutores da realização e das potencialidades do eu.

Com isso, desde o primeiro livro da trilogia, no qual fez uma reconstrução da ideia de liberdade desde a era da Reforma, passando pela tematização de mecanismos de fuga como autoritarismo, destrutividade e conformismo de autômatos, Fromm esteve preocupado, assim como outros teóricos da primeira geração de Frankfurt, em compreender a “psicologia do nazismo” (Fromm, 1974). Também Adorno se debruçou sobre o tema do fascismo e a questão da autoridade, em ensaios emblemáticos como Antissemitismo e propaganda fascistaTeoria freudiana e o padrão da propaganda fascista e Observações sobre política e neurose (Adorno, 2015), além de seu clássico Estudos sobre a personalidade autoritária, de 1950 (Adorno, 2019), no qual procurou, a partir de pesquisa empírica, desenvolver um método para medir os níveis de internalização de preconceitos (pensando a partir do antissemitismo) e da ideologia totalitária, típicos da personalidade autoritária. Horkheimer também apresenta contribuições importantes nessa direção, como, por exemplo, em seu artigo Autoridade e família, no qual analisa a família burguesa como cerne de reprodução dos padrões autoritários do capitalismo tardio (Horkheimer, 2015), com o que concorda totalmente Fromm, como veremos adiante.

Para Fromm, em consonância com isso, seria preciso compreender a ilusão da individualidade e os paradoxos da liberdade como impedimentos culturais específicos para a construção de uma sociedade democrática. Não por acaso, O medo à liberdade é escrito e publicado em 1941, durante a segunda guerra mundial. Nele, Fromm ressalta que os eventos políticos daquele momento e os riscos neles implícitos para as conquistas máximas da cultura moderna, ou seja, a individualidade e a originalidade da personalidade, fizeram-no concentrar-se no aspecto decisivo para a compreensão da crise cultural e social dos seus dias, a saber, o significado da liberdade para o indivíduo moderno (Fromm, 1974). A preocupação central com o problema da liberdade também pode ser vista nas análises de Marcuse, tanto em seu Eros e civilização, de 1955 (Marcuse, 1975), no qual procura reconstruir o problema do domínio sob o princípio de realidade freudiano, bem como posteriormente, em O homem unidimensional, de 1964, no qual analisa o problema das novas formas de controle no capitalismo tardio e, consequentemente, a construção de uma consciência infeliz (Marcuse, 2015).

Outro ponto alto da obra madura de Fromm é seu livro A sobrevivência da humanidade (1964) (May man prevail?, 1961). O livro é surge no ápice da guerra fria e de suas consequentes preocupações, como seu título sugere. Nele, o autor atualiza suas teses sobre o autoritarismo, a liberdade e a democracia. Sua crítica agora é montada contra o perigoso senso comum predominante nos Estados Unidos e no Ocidente como um todo, ou seja, o de que o comunismo, representado pela União Soviética e a China, seria um movimento revolucionário-imperialista empenhado na conquista do mundo pela força ou pela subversão. Com isso, apenas um potencial de contra-ataque e de retaliação suficientemente forte seria capaz de conter tal ameaça e de assegurar a paz, o que dependeria de aliados militares em todo o mundo (Fromm, 1964).

Nada poderia ser mais falso e perigoso, segundo Fromm. Tal posição era fortalecida pela convicção de que a política norte-americana não era apenas a única esperança de sobrevivência material, mas também a única recomendada pelas considerações morais e espirituais. Este senso comum acreditava representar a liberdade e o idealismo, enquanto os russos e seus aliados representariam a servidão e o materialismo. Considerava-se até mesmo o risco da guerra e da destruição, pois seria melhor morrer do que ser escravo (Fromm, 1964). Diante disso, nesse importante livro, atualmente esquecido no Brasil, assim como boa parte da obra de Fromm, o autor procura desconstruir estas falsas premissas, guiadas por suposições fictícias e deformadas de um “espírito confuso” que impunha um grave perigo a toda a humanidade (Fromm, 1964). Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência. Depois de levar a cabo seu importante projeto, com forte teor político, de diagnóstico e prognóstico das patologias da sociedade contemporânea, Fromm vai se dedicar cada vez mais a escritos de natureza existencial, como seus livros The art of loving, de 1956 (2008), e To have or to be?, de 1976 (2013), que se destaca dentre seus últimos trabalhos.

Dentre seus comentadores e críticos, podemos ressaltar o trabalho de Rainer Funk. Em artigo recente, ele analisa como a obra de Fromm, especialmente com sua percepção relacional da ação e sua teoria sobre o caráter social, permite uma aproximação produtiva entre a psicanálise e a sociologia (Funk, 2019). Nessa direção, o artigo de Adorno Sobre a relação entre sociologia e psicologia apresenta interessantes considerações, especialmente a partir de sua crítica a Parsons e às dificuldades deste em perceber a complexidade da relação entre personalidade e sociedade (Adorno, 2015). No artigo Adorno e a psicanálise, Sérgio Paulo Rouanet (2003) também tematiza aspectos interessantes dessa discussão.

Além destes, Thomas Kühn tem utilizado a psicanálise humanista de Fromm para tematizar as patologias e contradições atuais do mundo corporativo (Kühn, 2019). Daniel Burston, por sua vez, ressaltou a importância da obra de Fromm para a história da psicanálise, inclusive por conta de seu debate com Marcuse acerca das questões do instinto e do inconsciente (Burston, 1991). Ademais, Neil McLaughlin analisou as razões complexas que levaram Fromm a se tornar influente no pensamento crítico norte-americano entre as décadas de 1940 e 1960, bem como sua redução ao ostracismo nos anos de 1970 e 1980, com a ascensão de Derrida, muito articulado academicamente, na Europa e nos Estados Unidos (McLaughlin, 1998).

Recentemente, Hartmut Rosa afirmou que Fromm é o primeiro teórico da “ressonância” no século XX, conceito este cunhado por Rosa para retomar, nas sociedades atuais, o caminho contrário ao da alienação, preocupação esta sofisticada em Fromm, de modo a encontrar um verdadeiro lugar de conforto e liberdade do “ser no mundo” (Rosa, 2019). Além disso, outras leituras recentes procuraram fazer aproximações à obra de Fromm. Maccoby e McLaughlin (2019), por exemplo, fizeram um diálogo crítico entre Fromm e Bourdieu, a partir das semelhanças e diferenças entre os conceitos de caráter social e habitus, tendo como referência analítica um estudo de caso realizado por Fromm sobre o caráter social em uma comunidade mexicana. Ehnis e Voigt (2019), por sua vez, ressaltaram a atualidade de Fromm para se pensar a ascensão atual de movimentos de direita, compreendendo a ideia de alienação como baseada em sentimentos como ansiedade, sensação de impotência e indiferença. Além desses, Chancer (2019) destacou a importância da obra de Fromm para os estudos feministas, considerando suas críticas ao amor simbiótico e ao sadomasoquismo, às necessidades de reconhecimento mútuo e às objeções aos pressupostos patriarcais na obra de Freud. Por fim, Uozumi (2019) percebeu a influência da tradição de análise do individualismo americano na obra de Fromm, especialmente em O medo à liberdade, tradição aquela que se remete a autores como Tocqueville, David Riesman e Robert Bellah. Nessa direção, Fromm teria sugerido que o autoritarismo é resultado da solidão como fruto do individualismo moderno.

Nas ciências sociais brasileiras, atualmente, a obra de Fromm é quase inexistente, ao contrário de Habermas e Honneth, expoentes das gerações posteriores da escola de Frankfurt. Uma busca recente na plataforma Scielo, tanto por “autor” quanto por “assunto”, não apresenta nenhum resultado. Uma rara referência encontrada é um artigo de Jessé Souza, sobre Freud, Fromm e Adorno, no qual procura comparar a obra dos três autores e analisar a recepção da psicanálise nos trabalhos empíricos da primeira geração de Frankfurt. Souza destaca o pioneirismo da obra de Fromm no sentido de perceber as predisposições socialmente adquiridas que podem levar à adesão de uma pessoa ao autoritarismo ou à democracia (Souza, 2008).

Voltando à Fromm, especialmente na parte final da trilogia, Psicanálise da sociedade contemporânea, ele oferece um formato final para o projeto que batizou como uma “psicanálise humanista” (Fromm, 1970, p. 12). A tese central desta sua empreitada é a de que as paixões básicas do homem não estão arraigadas em suas necessidades instintivas, mas nas condições específicas da existência humana, na necessidade de encontrar nova relação com o homem e a Natureza após haver perdido a relação primária da etapa pré-humana (Fromm, 1970, p. 12).

Esta afirmação parte de uma reconstrução do pensamento freudiano e permite a Fromm um duplo movimento interpretativo: ele culturaliza as paixões básicas da humanidade e sugere que elas podem mudar de acordo com a época histórica e o contexto econômico e social. A primeira parte do movimento ancora-se em sua ruptura com a perspectiva freudiana de que nossas paixões mais profundas se explicam por nossas necessidades instintivas. A segunda parte está embasada na identificação das “condições específicas da existência humana” como base para a construção do conteúdo de nossos desejos e da nossa vontade.

Com isso em mente, eu gostaria de fazer aqui um exercício teórico no sentido de utilizar esta compreensão de nossa condição cultural humana para tentar trazer à tona a especificidade do comportamento e das paixões determinados pelo conteúdo específico da cultura do capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, a obra de Fromm apresenta sua relevância por perceber que a principal doença de nosso tempo não é aquela individualizada em pessoas que não se enquadram nos padrões do bom comportamento definidos pela cultura do mérito e do sucesso, mas sim uma doença coletiva e objetiva compartilhada em alguma medida por cada um de nós. Especialmente em Psicanálise da sociedade contemporânea, Fromm (1970) procura ir além de seu preciso diagnóstico nos livros anteriores da trilogia, ao esboçar sugestões concretas para a construção de uma “sociedade sã”. Para tanto, Fromm estava muito convicto de que o “progresso”, no melhor sentido deste conceito, apenas pode existir quando acontecem simultaneamente determinadas modificações nas esferas econômica, sociopolítica e cultural, ou seja, qualquer progresso restrito a apenas uma dessas esferas seria destrutivo para o progresso em todas as outras (Fromm, 1970).

De modo a desenvolver aqui os argumentos de Fromm, dividirei o texto a partir de agora em duas partes. Primeiro, veremos como ele questiona nossa condição de saúde mental e identifica o seu oposto. Nesse sentido, será fundamental compreender o que Fromm define como “patologia da normalidade”. Depois, será preciso reconstruir de que maneira ele situa culturalmente o indivíduo na sociedade capitalista contemporânea, pensando especialmente na condição existencial construída desde a segunda metade do século XIX até a primeira do século XX. Nesta parte, precisaremos de especial atenção à relação entre os conceitos de alienação e saúde mental. Por fim, procuro esboçar uma conclusão que aponte para a atualidade da obra de Fromm, a partir de tais pressupostos.

A patologia da normalidade na cultura capitalista contemporânea

Devemos a ideia de patologia social, em boa medida, a Durkheim. Sua preocupação com a coesão social e com as formas de divisão do trabalho anômicas não por acaso estava intimamente articulada ao seu interesse em compreender as razões sociais do suicídio (Durkheim, 2019). Recentemente, Axel Honneth (2015) trouxe de volta a ideia de patologia como um elemento central em sua reconstrução crítica para a compreensão dos paradoxos do que chamou, tomando emprestada a definição de Richard Sennett (2006), de “novo capitalismo”. Desde os estudos clássicos de Durkheim até a obra contemporânea de Honneth, a identificação da patologia social enquanto chave interpretativa central das sociedades modernas encontra na obra de Erich Fromm um divisor de águas. Para ele, a patologia da normalidade seria a condição existencial insana das sociedades capitalistas contemporâneas, que ao mesmo tempo se imaginam como racionais e mentalmente sadias (Fromm, 1970).

Não por acaso, em Psicanálise da sociedade contemporânea, Fromm inicia sua análise a partir de uma pergunta fundamental: somos mentalmente sadios? O pano de fundo que orienta esta questão é o mesmo que incomodou toda a primeira geração da escola de Frankfurt: um mundo que sobreviveu a duas guerras mundiais e que, nos anos de 1950, se apavorava com a possibilidade de uma terceira, nuclear, risco este que já naturalizamos em nosso imaginário atual e agora se transfere para a aceitação da política de morte da pandemia. Fromm inicia seu livro pintando um panorama geral acerca das contradições a esse respeito, tanto na vida política quanto na econômica e sociocultural. Em termos políticos, muitas vezes admiramos estadistas por tentarem evitar a guerra, desconhecendo o fato de que muitas vezes estes mesmos são os culpados. Em termos econômicos, restringimos nossa produtividade agrícola a fim de estabilizar o mercado, embora milhões de pessoas precisem de alimento. Nosso grau de alfabetização aumentou consideravelmente, além de nosso acesso aos meios de comunicação. Mas isso não nos tornou mais inteligentes nem nos deu acesso imediato ao que há de melhor na literatura ou na música. Pelo contrário, a indústria cultural toma boa parte de nosso tempo com coisas ordinárias, carentes de “senso de realidade” (Fromm, 1970). Além disso, reduzimos a média de horas de trabalho à metade do seu total, em comparação com meados do século XIX, e com isso temos mais tempo livre. Não sabemos, entretanto, como utilizá-lo.

Diante desse panorama paradoxal, Fromm estrutura sua crítica a boa parte da psiquiatria e da psicologia, que se recusa a identificar na totalidade da sociedade (e não no indivíduo) uma carência de sanidade mental. Sua percepção fundamental aqui identifica que o problema da sanidade mental em uma sociedade não se resume ao número de indivíduos “desajustados” ou “desviantes”, mas ancora-se no desajustamento da própria cultura. Em outros termos, a preocupação fundamental de Fromm e sua principal chave analítica nessa direção não residem na patologia individual, mas sim na “patologia da normalidade” coletiva, particularmente referindo-se ao contexto da sociedade ocidental contemporânea (Fromm, 1970). Um indício do caminho equivocado tomado pela psiquiatria e pela psicologia dominantes, para Fromm, em seu tempo, deve-se à inexistência de dados que permitam identificar a incidência de doenças mentais nos vários países do mundo ocidental.

No geral, Fromm procurou condensar psicanálise e sociologia, reproduzindo aqui uma das marcas centrais da primeira geração de Frankfurt. A separação acadêmica dessas disciplinas impede a realização de análises mais amplas, como, por exemplo, perceber que a própria sociedade é que se encontra doente, ou seja, perceber a vida coletiva, em sua ação e representações, como um ente passível de padecimento e sofrimento. Este movimento teórico se mostra, a partir de autores como Fromm, Adorno, Marcuse e, posteriormente, Axel Honneth, fundamental para o desdobramento de um dos aspectos centrais da teoria crítica, que é exatamente identificar as patologias das sociedades contemporâneas e a busca por suas razões. Inclusive, é possível que a separação acadêmica entre psicanálise e sociologia tenha privado, nas últimas décadas, uma sociologia da cultura capitalista, como tento fazer aqui, de recursos analíticos provenientes do casamento entre as duas disciplinas.

Nesta perspectiva, Fromm considera correta a suposição de que um alto índice de suicídio em uma sociedade reflita diretamente a sua falta de estabilidade e de saúde mental. Para ele, estava claro que esse cenário não resulta de pobreza material, considerando que os países mais pobres apresentam os mais baixos índices de suicídio, segundo dados da década de 1950, e que a crescente prosperidade material da Europa foi acompanhada por um número crescente de suicídios. Fromm também estava convicto de que o alcoolismo é um sintoma de instabilidade mental e emocional. Longe de reproduzir o clichê de que os países ricos são tristes e os pobres são felizes, Fromm estava identificando no suicídio e no alcoolismo efeitos de um problema experienciado coletivamente. Com efeito, ele sabia que as causas estavam ancoradas em aspectos essenciais da cultura capitalista.

Não por acaso, Fromm identifica na combinação entre índices de suicídio e homicídio um interessante fator sobre a insanidade mental de seu tempo. O que mais chamou sua atenção foi que os dados derivavam de países ricos como Estados Unidos, Suíça, Suécia e Dinamarca. Sua conclusão é alarmante: os países da Europa que se situam entre os mais democráticos, pacíficos e prósperos, ao lado dos Estados Unidos, são exatamente aqueles que apresentam os mais sérios sintomas de perturbação mental (Fromm, 1970). Com isso, chegamos a um ponto alto da análise, quando ele identifica a grande contradição cultural e existencial do Ocidente. Ou seja, o objetivo de todo o desenvolvimento socioeconômico do mundo ocidental é a vida materialmente confortável, além da distribuição relativamente igual de riqueza, da democracia estável e da paz. Na prática, os países que mais se aproximaram deste ideal são exatamente aqueles que apresentaram os maiores sintomas de desequilíbrio mental. Isso o conduz a algumas perguntas de ordem fundamental:

Será que a vida de prosperidade da classe média nos deixa, a despeito de atender às nossas necessidades materiais, com uma sensação de intenso tédio, sendo o suicídio e o alcoolismo formas patológicas de fuga a esse tédio? Serão aquelas cifras uma drástica ilustração confirmadora de que “nem só de pão vive o homem”, e indicativas de que a civilização moderna malogra em satisfazer às necessidades profundas do homem? Em caso afirmativo, quais serão estas necessidades insatisfeitas? (Fromm, 1970, p. 24).

O enfrentamento a estas questões o leva a uma pergunta-síntese: pode uma sociedade estar enferma? É a partir dela que ele procura desenvolver a ideia de patologia da normalidade. Para tanto, Fromm se posiciona contra um relativismo sociológico dominante em sua geração. Ele está se referindo aqui à postura da maioria dos sociólogos que acreditavam ser uma sociedade normal enquanto esta aparentemente “funciona” e que uma patologia só pode ser definida em termos da falta de ajustamento individual ao estilo de vida coletivo (Fromm, 1970). Para ele, em contrapartida, falar de uma “sociedade sã” implica uma premissa diferente desse relativismo sociológico. Isso apenas faz sentido se admitirmos a existência de uma sociedade que não seja sã, e esta suposição implica, por sua vez, a existência de algum critério universal de saúde mental válido para toda a humanidade. Apenas este critério pode permitir o julgamento do estado de saúde de cada sociedade. Esta seria uma postura básica de seu “humanismo normativo”, como ele mesmo o define (Fromm, 1970, p. 26).

Nesse sentido, o que em sua geração se chamava de “natureza humana” não passa de uma de suas muitas manifestações e, com frequência, de manifestação patológica, tendo sido geralmente a função dessa definição equivocada defender um tipo particular de sociedade como sendo consequência necessária da constituição mental da humanidade (Fromm, 1970). Assim, o verdadeiro problema, para Fromm, está em deduzir a “essência” comum a toda a “raça humana” das inumeráveis manifestações de sua natureza, tanto “normais” quanto patológicas, como podem ser observadas nos diversos indivíduos e diferentes culturas.

O que a humanidade faz no processo histórico, segundo Fromm, é desenvolver o seu potencial, transformando-o de acordo com as suas próprias possibilidades. Este ponto de vista não é nem biológico nem sociológico, mas transcende esta dicotomia pela suposição de que as principais paixões e tendências humanas resultam da “existência total” da humanidade, de que são definidas e determináveis, conduzindo algumas delas à saúde e felicidade, outras, à doença e à infelicidade (Fromm, 1970). Uma determinada ordem social não “cria” essas tendências fundamentais, mas estabelece quais das paixões em potencial, que existem em número limitado, deverão tornar-se manifestas ou dominantes.

Com isso, o humanismo normativo considera que a saúde mental só é de fato alcançada se a humanidade se desenvolve até a plena maturidade, segundo as características da natureza humana. A insanidade mental, nesse sentido, consiste no malogro de tal desenvolvimento. Baseado nesta premissa, o critério de saúde mental não deve ser o de ajustamento individual a uma determinada ordem social, mas um critério universal, válido para toda a humanidade, que ofereça alguma resposta satisfatória ao problema da existência humana (Fromm, 1970).

Tais percepções pavimentam o caminho para que Fromm identifique uma importante diferença entre doença mental individual e doença mental social. Para tanto, ele sugere uma diferenciação entre os conceitos de “defeito” e “neurose” (Fromm, 1970). Isso nos conduz a uma reflexão sobre a própria ideia de liberdade. Para Fromm, se uma pessoa malogra em atingir a liberdade, a espontaneidade e a expressão genuína do eu, ela pode ser considerada possuidora de sérios defeitos, desde que se admita que a liberdade e a espontaneidade são fins objetivos a serem atingidos por cada ser humano. Logo, se este fim não é atingido pela maioria de uma determinada sociedade, temos um fenômeno de “defeito socialmente modelado” (Fromm, 1970, p. 29). Com isso, uma pessoa pode ter perdido algo em riqueza humana e em sentimento autêntico de felicidade, sendo compensado pela segurança da harmonia com o resto da humanidade, pelo menos da forma como ele a conhece. Na verdade, seu próprio defeito poderá ter sido elevado à categoria de virtude por sua cultura, podendo, com isso, proporcionar-lhe uma intensa sensação de êxito (Fromm, 1970).

Sendo assim, o defeito socialmente modelado pela cultura capitalista contemporânea nos conduz à condição de criaturas que agem e sentem como autômatos, que jamais experimentam algo de realmente seu, que sentem o seu eu inteiramente como pensam que supostamente o seja. Para ele, com isso, o sorriso artificial substituiu o sorriso espontâneo, a tagarelice substituiu a palestra comunicativa e o surdo desespero substituiu a dor autêntica (Fromm, 1970). Com efeito, para a maioria das pessoas, a cultura oferece modelos que permitem “viver com um defeito sem se tornar doente”. Tudo funciona como se cada cultura fornecesse o remédio contra a exteriorização de sintomas neuróticos manifestos resultantes do defeito produzido por elas mesmas.

A esta altura, já podemos compreender aquilo que boa parte da sociologia definiu como “desvio”. Para Fromm, o modelo proporcionado pela cultura não funciona para uma determinada minoria. Trata-se de pessoas cujo “defeito” individual é mais sério do que o da média das pessoas, de forma que os remédios culturalmente oferecidos (em grande parte pela indústria cultural) não são suficientes para impedir a eclosão da doença manifesta (aqui, Fromm está pensando, por exemplo, em pessoas fortemente motivadas a buscar poder e fama). Por outro lado, há também aqueles cuja estrutura de caráter e, portanto, cujos conflitos diferem dos da maioria, de forma que os remédios eficazes para a maioria não lhes causam nenhum efeito. Nesse grupo de pessoas, nosso autor situa indivíduos de integridade e sensibilidade maiores do que as da maioria e que, exatamente por isso, se negam a aceitar o “narcótico cultural”, enquanto, ao mesmo tempo, não se encontram suficientemente fortes e sadios para viverem salutarmente “contra a correnteza” (Fromm, 1970).

Em suma, Fromm define este projeto investigativo, remetendo-se explicitamente ao seu mestre Freud, como uma “pesquisa da patologia das comunidades civilizadas” (Fromm, 1970, p. 34). Para tanto, baseia-se na ideia de que uma sociedade sã precisa corresponder às necessidades da humanidade, e isso não necessariamente se refere ao que a humanidade sente como suas necessidades, considerando que até os mais patológicos desejos podem ser subjetivamente sentidos como aquilo de que a pessoa mais necessita. O que ele quer dizer é que as sociedades devem corresponder ao que constitua objetivamente as necessidades humanas, nas formas em que estas possam ser determinadas pela investigação da natureza “cultural” humana. No próximo tópico, avançaremos em sua análise com os conceitos de caráter social e alienação, bem como com a identificação da situação humana determinada pelo capitalismo do século XX, de modo a compreender como esta se apresenta, ao que tudo indica, como a forma mais acabada de “patologia da normalidade” experienciada pela humanidade.

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Fabrício Maciel é Doutor em Ciências Sociais, professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFF Campos e professor permanente da Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Pesquisador do CNPq. macielfabricio@gmail.com

Recebido: 22 de Agosto de 2019; Aceito: 09 de Janeiro de 2020

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.

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