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[1] Formação de professores e currículo: questões em debate

Antonio Flavio Barbosa Moreira*
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Fonte: Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação
(On-line version ISSN 1809-4465. Ensaio: aval.pol.públ.Educ., ahead of print Epub Sep 14, 2020. https://doi.org/10.1590/s0104-40362020002802992. This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.
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* Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil/Universidade Católica de Petrópolis, Petrópolis, RJ, Brasil.

Resumo
O presente artigo traz uma análise teórica sobre a formação inicial docente e suas relações com o currículo. Busca-se, a partir dos argumentos levantados, configurar uma concepção de qualidade na escola e na formação docente, analisando a formação inicial de modo abrangente, para que se evitem parcialidades e fracionamentos. Como conclusões, aponta-se que essa formação não pode ser vista apenas como uma atividade prática, baseada na racionalidade instrumental, mas como atividade intelectual, pautada pelo exercício consciente da crítica e por uma postura humanista.

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1 Introdução

Neste texto, focalizo a formação inicial docente: tenho por propósito examinar princípios orientadores da organização e do funcionamento dos cursos que por ela respondem. Espero que os pontos de vista que defendo venham a configurar uma concepção de qualidade na escola e na formação docente.

Proponho-me, então, a examinar a formação inicial de modo abrangente, para que se evitem parcialidades e fracionamentos. Sustento que essa formação não pode ser vista apenas como uma atividade prática que vise, principalmente, a capacitar o docente a dominar técnicas e métodos a serem empregados, “com sucesso”, nas salas de aula. Como bem acentua Pinar, “nossa era está encharcada de energia prática. Deixou de se importar com as ideias, só quer ação” (2003, p. 142). Da adesão a essa perspectiva, a meu ver, pode resultar a celebração da prática pela prática. A adoção de um enfoque tão limitado, em que se supervalorizem o agir e a racionalidade instrumental, acaba contribuindo para que a formação de professores venha a se assemelhar aos locais de trabalho das grandes corporações e a se curvar às leis da economia e à mentalidade empresarial. Nesse caso, os sentidos mais globais e humanistas, que deveriam inspirar a formação, terminam substituídos por propósitos de controle de práticas, saberes, habilidades, atitudes, sentimentos e pensamentos.

Caminho, no presente texto, na contramão dessa tendência. Insisto em que se concebam a formação dos profissionais do magistério, assim como a prática pedagógica, como atividades intelectuais, pautadas pelo exercício consciente da crítica e por uma postura humanista. Não se trata de marcar a formação docente por “aprender a fazer bem algo novo”; a intenção é aprofundar a compreensão e aguçar a inteligência, a sensibilidade e o compromisso dos profissionais da Educação (PINAR, 2003).

Defendo a recuperação dos elos entre a estrutura interior do professor e a sua atuação no mundo, ou seja, entre interioridade e exterioridade, hoje quase ausentes da formação e da prática docente (BERNSTEIN, 1998). Proponho, ainda, que a formação docente se torne uma conversação instigante, cujo desenvolvimento possa intensificar a recuperação sugerida. Por conversação, refiro-me aos encontros que se desdobram nas escolas e nas salas de aula, pautados por diálogos densos, abertos, interessados e plenos de subjetividade (PINAR, 2003; 2004). Nessa conversação, reservo assento privilegiado para a teoria de currículo e suas pertinentes análises sobre os processos de seleção e de organização do conhecimento escolar.

É importante que se discuta com os professores, convocados a ensinar as diferentes disciplinas, o espírito que as deve animar. No currículo da formação docente, há que se reservar significativo espaço para que se avaliem as escolhas referentes ao que e como ensinar, que se apreciem suas razões e as necessidades a que visam a atender. Deve-se, assim, familiarizar os futuros docentes com os problemas para os quais os conteúdos curriculares pretendem oferecer soluções provisórias. Ou seja, é essencial iniciá-los nos grandes desafios a serem enfrentados pela Educação na sociedade. É essencial que os professores selecionem e ensinem conteúdos significativos, capazes de facilitar ao estudante melhor se situar no mundo em que vive e perceber as situações agressivas a que muitos indivíduos e grupos estão submetidos por fatores relacionados a classe, raça e gênero. A intenção é propiciar a compreensão de que essas situações não são inevitáveis e podem ser transformadas (MOREIRA; MACEDO, 2001, p. 123).

Em outras palavras, o que se pretende é “promover uma Educação que garanta a apropriação de conhecimentos, habilidades e visões de mundo que se mostrem indispensáveis para poder viver, conviver, lutar e sobreviver no mundo contemporâneo” (MOREIRA, 2013, p. 547).

Vale acrescentar que participar da escola implica saber como esta se estrutura e como funciona. Correspondendo ao principal ambiente de trabalho do professor, faz-se indispensável entendê-la, analisar seu passado, seu presente, assim como suas possibilidades futuras. Mas não é suficiente conhecer as leis que definem sua forma e sua organização. Há que se compreender suas motivações, suas metas, sua vida interna, suas normas, seus movimentos, suas contradições, suas possibilidades. Em síntese, entender as forças que movem tanto a escola quanto as disciplinas curriculares requer situá-las na cultura, na história, na política, na instituição e na subjetividade. Eis, com certeza, um importante desafio para os que pensam e organizam os currículos na formação de professores.

Defendo, assim, a necessidade de se estimular, junto ao profissional do magistério, a crítica da escola e das disciplinas. Daí a pertinência do estudo de teorias de currículo, tema que carece, a meu ver, de maior destaque na formação docente. Há que se oferecer ao professor uma formação em que o conhecimento apreendido ativamente, bem como as experiências vivenciadas, promovam o desenvolvimento de uma identidade que se construa, dominantemente, a partir do interior, de forma relativamente independente das leis do mercado e do consumo (BERNSTEIN, 1998). É essa a perspectiva que desejo destacar no texto que lhes apresento.

Ao desenvolvê-lo, examino continuidades e descontinuidades entre interioridade e exterioridade. A seguir, argumento a favor de uma escola e de uma formação docente que configurem espaços de crítica e de humanismo. Sustento, ainda, que se faça da teoria de currículo significativo objeto de estudo e análise nos cursos de formação. Nas considerações finais, esforço-me por reunir as principais linhas de argumentação
desenvolvidas ao longo do texto, alertando contra o perigo implicado na formação de um profissional “sem atributos” (MUSIL, apud LUCKMANNN, 2007).

2 A interioridade e a exterioridade na formação docente

Como já acentuou-se (BERNSTEIN, 1998), o princípio do mercado, vigente no mundo contemporâneo, tem gerado uma notável cisão entre quem conhece e o que é conhecido, provocando a formação de dois mercados independentes – um dos criadores e usuários do conhecimento e outro do próprio conhecimento. Essa descontinuidade acaba desconectando o interior do exterior, em consonância com os princípios do mercado pautados no neoliberalismo.

Contrapondo-me a essa abordagem, sugiro, mais uma vez, que a formação de professores preserve, em seu currículo, a articulação entre interioridade e exterioridade, ou, em outros termos, entre a relação do docente com o seu próprio eu e a sua relação externa com o mundo. Vejo-as, agregadas, conformando a identidade dos professores como seres sociais e membros da sociedade e, mais especificamente, como membros autônomos e competentes de um grupo profissional (YOUNG, 2008). Daí a necessidade de que o conhecimento, na formação de professores, corresponda à expressão externa de uma relação interior.

A primeira ruptura na continuidade do conhecimento oficial parece ter ocorrido no período medieval (DURKHEIM, 1977). Naquela ocasião, tornou-se notória a descontinuidade entre o trivium e o quadrivium, significativamente distinta da que hoje se verifica. Para entender essa diferença e defender meu ponto de vista, recorro, então, a Bernstein (1998), bem como à sua leitura de Durkheim (1977).

Em seu estudo do desenvolvimento da Educação Secundária na França, Durkheim caracteriza a Educação na antiguidade clássica, antes de tudo, por seu enciclopedismo. A totalidade do conhecimento humano, vista como necessária para que o Ensino fosse, de fato, educativo, se apresentava, então, sob a forma de sete disciplinas – as sete artes liberais –, divididas em dois grupos, cujos significados educacionais eram distintos entre si e variaram ao longo da Idade Média. Ensinava-se primeiro o trivium (gramática, retórica e dialética), que incluía o conhecimento comum, o conhecimento plebeu, e, a seguir, o quadrivium (aritmética, astronomia, geometria e música), que representava o conhecimento reservado a uma elite de especialistas. O trivium correspondia à exploração da palavra, ao passo que o quadrivium à exploração do mundo, associados, ambos, pela unidade do cristianismo.

Por meio do trivium se instruía a mente sobre si própria, isto é, dava-se a conhecer as leis a que obedecemos quando pensamos e quando nos expressamos, assim como as regras que devemos seguir para pensarmos e nos expressarmos corretamente. O quadrivium consistia de uma série de ramos do conhecimento relacionados com as coisas. Visava a favorecer a compreensão das realidades externas e das leis que as governam. Em última análise, o trivium buscava configurar a inteligência, ao passo que o quadrivium pretendia preenchê-la, nutri-la.

Complementando a interpretação de Durkheim, Bersntein acentua que, no caso do trivium, mais do que da palavra, tratava-se da compreensão dos princípios a ela subjacentes. Do mesmo modo, no quadrivium, mais do que propriamente para o mundo, o foco se dirigia para os princípios necessários à sua compreensão. Por isso, estudava-se o trivium e depois o quadrivium.

Ainda conforme Bernstein, com o trivium criava-se uma determinada forma de consciência, uma modalidade característica do eu: buscava-se estabelecer limites a essa forma de consciência, regulando o eu. A meta era, então, a construção do interior, condição prévia para a compreensão do exterior, do mundo.

Nessa seqüência pedagógica (a palavra precedendo o mundo), a interioridade e o compromisso configuravam os termos do engajamento prático com o mundo, o que corresponderia às origens das profissões. Pode-se considerar que o comprometimento profissional, bem como o senso de dedicação a ele associado, resultariam, ao menos em parte, da separação da palavra e do mundo (YOUNG, 2008).

No período medieval, havia, assim, dois discursos especializados distintos: um para a construção do interior e outro para a construção do exterior. Nos séculos seguintes, o fundamento religioso do conhecimento oficial foi progressivamente substituído por um princípio humanista secular. No momento atual, em muitas situações, os princípios do mercado e da economia converteram-se no critério orientador da seleção dos discursos, de suas vinculações, de suas formas e, mesmo, de sua investigação. Uma das conseqüências tem sido a crescente insistência em destrezas básicas mensuráveis (na escola fundamental), em especializações profissionais (no Ensino Médio) e em uma falsa descentralização e novos mecanismos de controle estatal (na Educação Superior e na pesquisa).

O conhecimento termina por encaminhar-se para direções em que proporcione vantagens e benefícios. O conhecimento divorcia-se do interior e das diretrizes humanistas que deveriam inspirá-lo. Alienando-se o conhecimento da interioridade, do compromisso, do esforço pessoal, da estrutura profunda do eu, faz-se possível trocar as pessoas de posições, substituir umas por outras, assim como excluí-las do mercado. Porém, concebendo-se o conhecimento como a expressão externa de uma relação interior, pode-se garantir sua legitimidade, sua integridade, sua dignidade, bem como o status de quem conhece. É essa última perspectiva que gostaria de ver pautando os cursos de formação docente.

Abordando-se a formação com base na articulação entre interioridade e exterioridade, na associação entre o conhecimento e o sujeito que conhece, na visão da ação docente como a expressão de uma relação interior, pode-se refletir mais profundamente sobre aspectos que devem marcá-la. Entre eles, reitero a necessidade de se conceber a prática do professor como atividade intelectual, bem como a premência de se incluir reflexões sobre o currículo nos cursos de formação. Sustento, então, que o questionamento do existente (tarefa nuclear da função intelectual), bem como a análise de questões relativas ao conhecimento escolar (à sua construção, à sua seleção, à sua organização e ao seu Ensino), quando presentes na formação docente, catalisam o desenvolvimento da interioridade indispensável ao exercício da docência. No processo, a formação docente e a escola conformam-se como espaços de crítica e de humanismo.

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Informações do autor: Antonio Flavio Barbosa Moreira: Doutor em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres. Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor titular da Universidade Católica de Petrópolis. Pesquisador 1A do CNPq. Contato: afmcju@gmail.com

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