Resumo
Neste artigo, procuro problematizar a crítica de Erich Fromm à cultura do capitalismo contemporâneo. Para tanto, faço uma releitura especialmente, mas não apenas, de uma de suas principais obras maduras, o livro Psicanálise da sociedade contemporânea (The sane society), no qual o autor sedimenta seu projeto analítico de uma “psicanálise humanista”. Na primeira parte o artigo reconstrói, através da ideia de “patologia da normalidade”, a crítica de Fromm aos fundamentos culturais do capitalismo contemporâneo. Na segunda parte, a reconstrução é levada adiante através dos conceitos de “caráter social” e “alienação”, de modo a compreender como o capitalismo tardio do século XX aprofunda, como nunca antes, uma cultura anti-humanista. Na conclusão, procuro argumentar como a obra de Fromm pode ser de grande valia para a compreensão dos problemas tanto individuais quanto coletivos da atualidade.
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A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista contemporânea
Fabrício Maciel*
Sociologias vol.22 no.55 – Porto Alegre Sept./Dec. 2020
http://dx.doi.org/10.1590/15174522-95752
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
*Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil
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Caráter social e alienação na sociedade capitalista do século XX
Caráter social e alienação serão os dois conceitos-chave que guiarão nossa reconstrução do pensamento de Fromm nesta parte. Esta articulação nos permitirá compreender um tema central em sua obra, a saber, o incômodo e a insuficiência da experiência humana no contexto criado pela cultura capitalista contemporânea. Para tanto, Fromm acreditava que seria preciso chegarmos a uma ideia da “personalidade do homem médio” que vive e trabalha sob os grilhões dessa cultura. Este seria um aspecto central para compreendermos o conceito de “caráter social”. Com este conceito, Fromm procura dar conta do “núcleo da estrutura do caráter compartilhada pela maioria dos indivíduos de uma mesma cultura”, o que difere do caráter individual, distinto em cada um dos indivíduos pertencentes a esta mesma cultura (Fromm, 1970, p. 86).
Fromm acreditava que os membros de uma sociedade, suas classes e seus grupos de status precisam necessariamente comportar-se de maneira que lhes permita funcionar no sentido exigido pela cultura capitalista. Com efeito, a função do caráter social consiste exatamente em modelar as energias dos membros da sociedade de forma que sua conduta não seja assunto de decisão consciente quanto a seguir ou não uma norma social, mas uma questão de simplesmente desejarem comportar-se como têm de comportar-se, alcançando, com isso, prazer em proceder da forma exigida pela cultura. Em suma, a função do caráter social consiste em “moldar e canalizar a energia humana em uma determinada sociedade, para que esta possa continuar funcionando” (Fromm, 1970, p. 87). Como exemplo, Fromm argumenta que a sociedade industrial moderna não teria alcançado os seus objetivos, caso não tivesse arregimentado a energia dos indivíduos livres para trabalhar com uma intensidade sem precedentes. Ou seja, a “necessidade” de trabalhar, de pontualidade e de ordem precisou se transformar em “impulso” interior para tais objetivos, o que significa que a sociedade precisou produzir um caráter social de modo a que tais impulsos fossem a ele inerentes (Fromm, 1970).
Nessa direção, podemos considerar as estruturas da sociedade e a função do indivíduo na cultura como determinantes do conteúdo do caráter social. Com efeito, Fromm considerava a família como uma espécie de “agência psíquica da sociedade”, ou seja, a organização que assume a missão de transmitir as exigências da sociedade à criança em crescimento (Fromm, 1970). Considerando que o caráter da maior parte dos pais é expressão do caráter social predominante, transmitem-se à criança, dessa maneira, os traços essenciais da “estrutura de caráter socialmente desejável” (Fromm, 1970, p. 90). Assim, os métodos educativos só podem ter importância como mecanismo de transmissão e ser corretamente entendidos se compreendermos, antes de tudo, quais tipos de personalidade são desejáveis e considerados necessários em uma determinada cultura.
De modo a compreender exatamente como a cultura capitalista conforma o caráter social no século XX, precisamos entender primeiramente a conformação do capitalismo no século XIX, segundo Fromm. Para ele, é de fundamental importância o papel do mercado moderno como “mecanismo central da distribuição da produção social” (Fromm, 1970, p. 94), sendo esta instituição, exatamente por isso, a base da formação das relações humanas na sociedade capitalista. O mercado, assim, seria um mecanismo de distribuição, já no século XIX, que se regula automaticamente, o que torna desnecessário dividir a produção social segundo um plano novo ou tradicional e, com isso, elimina a necessidade de se usar a força como base central da reprodução social. Com isso, o funcionamento econômico do mercado repousa sobre a competição de indivíduos que querem vender suas mercadorias, assim como o seu trabalho ou os seus serviços no “mercado de trabalho e de personalidade” (Fromm, 1970), concordando aqui com a interpretação de seu contemporâneo Wright Mills (1976). A conclusão é que, nessa luta pelo sucesso, ruíram as regras sociais e morais da solidariedade humana, considerando que a importância da vida agora consiste em simplesmente ser o primeiro em uma corrida competitiva (Fromm, 1970). Com isso, Fromm arrisca uma definição da situação moral da sociedade capitalista já no século XIX:
[o] que caracteriza a distribuição da renda no capitalismo é a falta de proporção equilibrada entre o esforço e o trabalho de um indivíduo e a consideração social que se lhe concede sob a forma de compensação financeira. Em uma sociedade mais pobre do que a nossa, essa desproporção teria por consequência extremos de luxo e pobreza maiores do que poderiam tolerar as nossas normas morais.1 Porém eu não desejo acentuar os efeitos materiais dessa desproporção, mas seus efeitos morais e psicológicos. Um dos efeitos é a desvalorização do trabalho, dos esforços e habilidades do homem. O outro está em que, enquanto o meu ganho estiver limitado pelo esforço por mim desenvolvido, o meu desejo também o estará. Por outro lado, se minha renda não é proporcional ao meu esforço, não haverá limitações para os meus desejos, pois sua satisfação depende das oportunidades oferecidas por determinadas situações do mercado e não de minhas próprias capacidades (Fromm, 1970, p. 97).
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1 Aqui Fromm está naturalmente pensando em sociedades centrais, como os Estados Unidos e a Alemanha. A reflexão se posiciona como uma crítica aos efeitos ainda mais perversos que a cultura capitalista produz em sociedades periféricas, como a brasileira.
Com isso, Fromm percebe, no século XIX, o germe de uma condição moral que se intensificará no século XX. Isso lhe permite compreender que o prazer da propriedade em si, independentemente da produção e da busca de lucros, é um dos aspectos fundamentais do caráter das classes média e alta do século XIX. Em resumo, o caráter social no século XIX é uma mescla de autoridade racional e irracional. Trata-se de um caráter essencialmente hierárquico, embora não mais, como na sociedade feudal, baseado no direito divino e na tradição, mas simplesmente na posse de capital, com todos os efeitos descritos acima. Em suma, o conflito entre capital e trabalho se coloca acima do próprio conflito entre as classes e da luta pela participação no produto social. Trata-se de um conflito entre princípios de valorização, ou seja, “entre o mundo das coisas e sua acumulação e o mundo da vida e sua produtividade” (Fromm, 1970, p. 101).
Vamos agora reconstruir, segundo Fromm, as principais mudanças, tanto materiais quanto morais e psicológicas, na sociedade capitalista do século XX, bem como seus efeitos na experiência individual. Para ele, a mudança mais flagrante, do século XIX para o XX, é a da técnica e o maior uso da máquina a vapor, do motor de combustão interna, da eletricidade, bem como o começo do emprego da energia atômica. Articulado a isso, presenciamos o aumento da importância do mercado interno de cada nação. Toda a organização econômica repousa no princípio da produção e do consumo em massa. Com isso, presenciamos o que ele define como “milagre da produção” e “milagre do consumo”. Agora, os seres humanos manejam forças infinitamente maiores e mais poderosas do que aquelas que a natureza outrora lhes oferecera. Já não há barreiras tradicionais que impeçam que alguém compre o que quiser, teoricamente. Tudo está ao alcance de todos, tudo pode ser comprado e consumido.
Diante desse panorama, Fromm se coloca as seguintes questões, de ordem vital: de que tipo de pessoas a nossa sociedade atual necessita? Qual é o caráter social adequado ao século XX? Sua resposta sugere uma direção para uma reinterpretação radical do sentido da cultura capitalista. O capitalismo do século XX, para ele, necessita de pessoas que cooperem sem atritos em grandes grupos, que desejem consumir cada vez mais, e cujos gostos estejam padronizados e possam ser facilmente influenciados e previstos. Também necessita de indivíduos que se sintam livres e independentes, que se percebam não submetidos a nenhuma autoridade, a nenhum princípio e a nenhuma consciência, mas que desejem ser mandados, fazer simplesmente o que deles se espera e adaptar-se sem atritos à ordem social. Isso o conduz a outra pergunta: como pode o ser humano ser guiado sem se recorrer à força, ser conduzido sem chefes, ser incitado sem metas, a não ser aquela de tomar parte no desenvolvimento, de atuar e de avançar? (Fromm, 1970).
O conceito de alienação de Marx, psicologizado por Fromm, será a chave mestra que o guiará rumo à resposta. Para tanto, ele inicia reconstruindo duas características essenciais do capitalismo no século XX: a quantificação e a abstratificação. Nesse sentido, a transformação do “concreto” em “abstrato” desenvolveu-se muito além do simples balanço e da quantificação dos incidentes econômicos na esfera da produção. O homem de negócios moderno não só lida com dinheiro aos milhões, mas também com milhões de clientes, milhares de acionistas e milhares de operários e empregados de escritório. Todas essas pessoas são peças de uma máquina gigantesca que precisa ser controlada e cujos efeitos precisam ser calculados. Com isso, cada pessoa é representada por uma entidade abstrata, por uma cifra, e sobre tal base calculam-se os incidentes e riscos econômicos, preveem-se as tendências e tomam-se as decisões (Fromm, 1970).
A separação entre proprietários e diretores das grandes empresas, já existente no século XIX e agora mais intensa, é um aspecto central para a compreensão desse cenário. Os trabalhadores são contratados por instituições cujos diretores são partes impessoais da empresa e não indivíduos em contato pessoal com outros indivíduos que eles empregam. A única pessoa que está em contato com o produto de uma empresa (ou uma seção) em sua totalidade é o diretor. Entretanto, para ele, o produto é uma abstração, cuja essência é o valor em câmbio, enquanto o trabalhador, para quem o produto é uma coisa concreta, não trabalha nunca com ele como um todo (Fromm, 1970). Com isso, a cultura contemporânea abriu caminho a uma referência quase exclusiva às qualidades abstratas das coisas e das pessoas e ao esquecimento de nossa relação com sua constituição material e singularidade. As pessoas agora são avaliadas como encarnações de um valor de câmbio quantitativo. Para Fromm, este processo de abstratificação tem raízes profundas que se remetem às próprias origens da era moderna, ou seja, à dissolução de todo o quadro concreto de referência no processo da vida.
Até o fim do século XIX, a natureza e a sociedade ainda não haviam perdido seu caráter concreto e sua precisão. Os mundos natural e social ainda eram manejáveis, ainda tinham contornos definidos. Por outro lado, as grandezas com as quais lidamos hoje são cifras e abstrações, estando muito além dos limites alcançáveis pela experiência concreta. Não restou nenhuma estrutura de referência manejável, observável, que se adapte às dimensões propriamente humanas. Enquanto nossos olhos e ouvidos recebem impressões somente em proporções humanamente manejáveis, nosso conceito do mundo perdeu precisamente esta qualidade e não mais corresponde às nossas dimensões humanas. A ciência, os negócios e a política perderam todos os fundamentos e proporções que fazem sentido humanamente. Como nada é concreto, nada é real, tudo se torna possível, de fato e moralmente. Em suma, a humanidade foi arrancada de toda a posição definida de onde possa dominar e manejar sua vida. Somos agora arrastados velozmente por forças que nós mesmos criamos (Fromm, 1970).
A esta altura, temos pavimentado o caminho para o início da compreensão do conceito de alienação, em seu formato desenvolvido por Fromm. Ele nos remete à questão mais fundamental, ou seja, perceber quais são os efeitos mais profundos do capitalismo contemporâneo na personalidade humana. Para tanto, Fromm compreende a alienação enquanto um modo de experiência no qual a pessoa se sente como um estranho, alienado de si mesmo. Não se sente como centro de seu mundo, criador de seus próprios atos, tendo estes e suas consequências sido transformados em seus senhores, aos quais precisa obedecer. A pessoa alienada não tem contato consigo mesma e com as outras pessoas. Percebe a si e aos demais como coisas, com os sentidos e com o senso comum, mas, ao mesmo tempo, sem relacionar-se produtivamente consigo mesma e com o mundo exterior (Fromm, 1970).
Com isso, a pessoa que é movida principalmente por sua sede de poder ou dinheiro, por exemplo, já não sente a si mesma com a riqueza e a ausência de limitações de um ser humano, mas torna-se escrava de um impulso parcial nela existente, que se projeta em objetivos externos e pelo qual está possuída. Em suma, para Fromm, o fato em comum a vários fenômenos humanos, como a adoração de ídolos, o amor idolátrico a uma pessoa, o culto idolátrico de Deus, a adoração de um chefe político ou do Estado e o culto idolátrico às exteriorizações de paixões irracionais resume-se ao fenômeno da alienação. Com isso, o fato é que a humanidade não sente a si mesma como portadora ativa de seus poderes e riquezas, mas como uma coisa empobrecida que depende de poderes exteriores a ela e nas quais projetou sua substância vital (Fromm, 1970).
Nesse contexto, é muito interessante o papel que Fromm atribui aos diretores de empresas no processo de alienação da cultura capitalista contemporânea. Para ele, os executivos manejam o todo e não a parte, mas também são, eles mesmos, alheados de seu produto como coisa concreta e útil. Sua tarefa consiste em empregar proveitosamente o capital investido por outros. É muito sintomático, com isso, o fato de os diretores, que têm a seu cargo as relações de trabalho e as vendas, ou seja, os encargos de manipulações humanas, adquirirem uma importância cada vez maior no capitalismo. Os executivos, assim como os trabalhadores, lidam com gigantes impessoais: a empresa competitiva gigantesca, o gigantesco mercado interno e mundial, um consumidor gigantesco que precisa ser incitado e manejado, sindicatos gigantescos e governos igualmente gigantescos. Todos esses gigantes possuem vida própria e são eles que determinam a atividade dos diretores e executivos de empresa (Fromm, 1970).
Não foi por acaso que Fromm identificou a centralidade da função de diretor na reprodução da cultura capitalista alienada. O problema sobre o papel dos diretores suscita um dos fenômenos mais significativos dessa cultura, ou seja, o problema da burocratização, conhecidamente analisado por Max Weber. O que está em jogo aqui? Tanto a administração dos grandes negócios como a dos governos é realizada por uma burocracia. Com isso, os burocratas se tornam especialistas na administração de coisas e de pessoas. Por isso, em razão da grandeza do aparato a ser administrado e da consequente abstratificação, a relação dos burocratas com as pessoas é de alienação total. Isso nos possibilita compreender a frieza e o distanciamento com os quais um diretor de empresa, com uma assinatura, é capaz de demitir milhões de pessoas de uma só vez. Assim, as pessoas administradas são apenas objetos que o administrador vê, sem amor ou ódio, de modo impessoal. O burocrata-diretor não deve sentir nada, com respeito a sua atividade profissional, ou seja, deve manipular as pessoas como se fossem cifras ou coisas. Com isso, os burocratas-diretores são inevitáveis: sem eles a empresa entraria em colapso em pouco tempo, já que ninguém mais conhece o segredo que a faz funcionar (Fromm, 1970).
A validade dessa análise se confirma pelo fato de que, ao longo do século XX, a importância dos grandes negócios tornou-se cada vez maior em seu papel normativo em nossa cultura. Neste ponto, Fromm recorre ao pensamento de Peter Drucker, o conhecido mentor das organizações, para encontrar uma sucinta e precisa definição. Para este último, as corporações crescem como instituições determinantes da vida, mesmo daqueles que não fazem parte delas diretamente. Com isso, “todo o caráter da sociedade é determinado e moldado pela organização estrutural da grande empresa, pela tecnologia da instalação de produção em massa e pelo grau de realização das nossas convicções e promessas sociais nas grandes empresas e pelas grandes empresas” (Drucker apudFromm, 1970, p. 131). Como consequência, os proprietários das grandes empresas também têm com elas uma relação de quase total alienação. Sua propriedade consiste em um pedaço de papel representativo de certa quantidade de dinheiro. Não têm nenhuma obrigação com a empresa e nenhuma relação concreta com ela.
Em suma, a função dos diretores de empresa no capitalismo nos permite compreender alguns aspectos gerais da tese de Fromm. Nessa direção, ele ressalta que, diferente da maior parte das outras sociedades, nas quais as regras sociais são explícitas e fixadas à base do poder político ou da tradição, o capitalismo não tem regras explícitas. Contrariamente, baseia-se no princípio de que somente quando cada indivíduo luta por seus interesses no mercado o resultado será o bem comum, e a consequência será a ordem e não a anarquia. Nesse sentido, a alienação entre os indivíduos resulta na perda dos vínculos gerais e sociais que caracterizavam a sociedade medieval e quase todas as sociedades pré-capitalistas (Fromm, 1970).
Com isso, a “personalidade alienada” que se põe à venda no mercado de personalidades tem necessariamente que perder grande parte de seu sentimento de dignidade, característico das pessoas nas culturas pré-modernas. A personalidade alienada acaba perdendo o “sentimento de seu eu”, de si mesmo como entidade única e irreproduzível. Nessa direção, o sentimento do eu precisa nascer da experiência que uma pessoa tem de si como sujeito de seus pensamentos, sentimentos, decisões, julgamentos e atos. Pressupõe que a experiência seja exclusivamente individual e não alienada. As coisas não possuem um eu, da mesma forma que as pessoas que se tornaram coisas também não podem possuir (Fromm, 1970).
Por fim, Fromm vai articular a relação entre o caráter social alienado produzido pela cultura capitalista e os problemas do mérito e do suicídio. Para ele, o indivíduo moderno tem um problema inédito, ou seja, refletir sobre se a vida merece ser vivida e, como consequência, depara-se com as sensações de que a vida é um fracasso ou um êxito. Tal experiência tem como base um conceito da vida como um empreendimento que deve produzir necessariamente algum lucro. Com isso, o fracasso é sentido como a falência de um negócio, no qual as perdas são maiores do que os lucros (Fromm 1970). Para ele, esta interpretação da vida como um empreendimento comercial parece ser a base do aumento de suicídios na sociedade ocidental contemporânea. Para Fromm, a tese da anomia de Durkheim, ou seja, a perda dos vínculos sociais tradicionais, para explicar o suicídio, teria ignorado o importante fato de que nós modernos internalizamos a necessidade incontornável de perceber a vida através de uma ideia de “balanço” de uma empresa comercial, que pode fracassar. Em termos gerais, com isso, Fromm constrói uma crítica radical da cultura capitalista, no sentido de perceber seus efeitos inevitáveis na construção do sofrimento humano em nosso tempo.
Conclusão – a atualidade de Erich Fromm
Diante do exposto, a percepção de um caráter social alienado, conforme realizada por Fromm, pode ser um importante caminho para se pensar o “capitalismo flexível” atual. Ela nos ajuda a definir os aprofundamentos e a radicalização propriamente culturais de aspectos vitais do capitalismo contemporâneo. A ideia de caráter social alienado é decisiva para a compreensão das práticas e da mentalidade criadas como norma e como expectativa atualmente pelo capitalismo. Com isso, podemos problematizar em que medida o comportamento padronizado pelo “novo” capitalismo flexível, fenômeno este definido por Richard Sennett (2006) como “corrosão do caráter”, não seria uma atualização da condição de “patologia da normalidade”, como compreendido por Fromm em seu tempo.
Contrário às promessa de felicidade, reconhecimento e realização no capitalismo atual, o que uma observação atenta da cultura capitalista atual sugere, conforme analisado por Sennett (2006), aproxima-se bastante da descrição de Fromm com sua tese do caráter social alienado: entrega total ao sistema de trabalho, busca incessante e sublimação de todas as necessidades no consumo, ausência de tempo livre e perda do sentido de uma vida realmente preenchida de significado. E isso sem contar o conteúdo do trabalho realizado pelos principais diretores e executivos, ou seja, a construção consciente e a reprodução de uma dominação social de classes ainda mais invisível e insensível do que aquela vista em períodos anteriores, como deixa claro a comparação realizada por Boltanski e Chiapello (2009) entre a mentalidade e a ação dos executivos das décadas de 1960 e 1990.
Com isso, diante do exposto, podemos notar que a obra de Erich Fromm é responsável por um tipo de crítica profunda da cultura capitalista, tendo esta como aspecto central a identificação da produção objetiva do sofrimento humano na forma de sua sensação de incompletude e mal-estar. Para ele, a liberdade precisa ser interpretada como um problema de ordem sociológica e coletiva, e não simplesmente de ordem psicológica e individual (Fromm, 1974). Em sua ruptura com o pensamento freudiano, Fromm sedimenta sua percepção de que a “psicologia do nazismo” explica-se pela necessidade que o indivíduo moderno tem de fugir de suas possibilidades de liberdade. Por um lado, a liberdade moderna proporcionou independência e racionalidade, quando permitiu ao indivíduo romper com os grilhões da sociedade pré-individualista. Por outro, fez com que ele se sentisse sozinho, angustiado e impotente. Assim define Fromm a ambiguidade da liberdade dos modernos. Esta análise pode ser de grande valia para compreendermos o fenômeno de ascensão da extrema direita na atual conjuntura global.
Isso fica claro, por exemplo, quando Fromm compreende que o indivíduo moderno, angustiado por seu isolamento, pode tentar fugir do peso de sua liberdade para a busca de novas dependências e para a submissão a algum líder ou a alguma forma de autoridade. Este seria um aspecto central da conformação específica do fenômeno contemporâneo da alienação. Por um lado, a vida econômica, estruturada por um mercado de trabalho cada vez mais indigno e seletivo, tende a empurrar as pessoas para uma forma de individualismo negativo, contrário à realização da liberdade e da autenticidade do eu. Tal realização exigiria formas de vida contrárias ao caráter social alienado, caráter este que encontra profundas afinidades com o perfil profissional individualista e desprendido exigido hoje pelo “novo” capitalismo flexível. Essa realidade se intensifica diante da desconstrução de direitos e da institucionalização da indignidade do trabalho, entregando milhões de pessoas à condição econômica e existencial de vulnerabilidade e descartabilidade.
Em consonância, a vida política também é seriamente comprometida, na medida em que os mesmos indivíduos alienados na busca de segurança material e realização pessoal, diante de uma sequência de frustrações podem fugir dessa falsa liberdade e individualidade na submissão a líderes autoritários que prometam alguma redenção. Esta possibilidade se amplia diante de um processo, que acompanhamos agora, de banalização, novelização e deslegitimação da esfera política no mundo inteiro, reduzida pela grande mídia a um espaço de corrupção intrínseca e não de ação coletiva legítima. Como consequência, a realização plena do eu, como idealizada por Fromm, perde-se de seu caminho, confirmando o valor de sua análise sobre nossa patologia da normalidade, que esconde suas verdadeiras razões, como ele diria, no “espírito confuso” que domina a cultura capitalista. Sua obra, com isso, é de grande valia para a compreensão da obscuridade em nosso tempo.
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Fabrício Maciel é Doutor em Ciências Sociais, professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFF Campos e professor permanente da Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Pesquisador do CNPq. macielfabricio@gmail.com.
Recebido: 22 de Agosto de 2019; Aceito: 09 de Janeiro de 2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
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