Fonte: Análise Social, lv (1.º), 2020 (n.º 234), pp. 209-214.

https://doi.org/10.31447/as00032573.2020234.12. Populismo, a Revolta Contra a Democracia Liberal, Porto Salvo, Desassosego, 2019, 304 pp. isbn 9789898892454. [Original title — National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy, by Roger Eatwell and Matthew Goodwin.] “Todo o conteúdo do periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons.”

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Recensão. Populismo, a Revolta Contra a Democracia Liberal, de R. Eatwell e M. Goodwin

por João Carlos Sousa

A obra em apreço representa um subs­tancial contributo para a efetiva com­preensão do fenómeno sociocultural mais marcante do espectro político do início do século xxi. O trabalho concep­tual em torno da noção de nacional-po­pulismo tem a pertinência de a partir do debate contemporâneo sobre populismo, enfatizar as suas raízes socioculturais. Com esta opção, os autores colocam na equação analítica a singularidade que cada expressão populista tem em cada um dos países em que se observa.

A reflexão segue três grandes linhas de argumentação. O primeiro passa pelo desenvolvimento da tese dos “quatro D” através da qual identifica os principais epicentros de mudança sociopolítica que estão a montante do recrudescimento dos diversos movimentos populistas um pouco por todo o mundo, mas em parti­cular nas democracias liberais ocidentais. Desta forma, os autores refletem sobre a base social de apoio e recrutamento dos diferentes movimentos nacionais-popu­listas que proliferam no cenário político ocidental. Em segundo lugar, o nacio­nal-populismo não é um produto da crise política, nem o resultado da Grande Recessão, muito embora tenha sido exa­cerbado e expandido a partir destes dois factos políticos e económicos que mar­caram a última década. Por último, o populismo veio fazer a crítica da própria democracia liberal. Por isso não é um fenómeno transitório, ele veio para ficar. Sendo um produto do desenvolvimento disfuncional da democracia liberal, não contesta a sua existência, mas critica-a.

Em termos orgânicos, a obra está arquitetada em seis capítulo, mais a introdução e conclusões. A introdução serve fundamentalmente para exposi­ção das raízes históricas e políticas do populismo, enquanto movimento crítico do status-quo nas sociedades hodiernas. Nela os autores identificam os dois eixos argumentativos que desenvolverão nos capítulos subsequentes. Por um lado, o modelo dos “quatro D”, por outro lado o perspetivar do populismo como um fenómeno sociopolítico que vai marcar a paisagem política nas próximas décadas.

No capítulo “Mitos”, os autores pro­curam expor e discutir as premissas que têm presidido ao debate encetado na esfera pública, sobre quem são os atores e apoiantes populistas. Algumas das ideias a “desmontar” são: (1) a pre­ponderância do ciclo de vida no apoio ao populismo, mormente no ocidente, onde não se encontram apenas “velhos”  brancos deserdados da globalização e com baixa escolaridade. Neste grupo podemos encontrar trabalhadores a tempo integral, conservadores, classe média, trabalhadores independentes, com médios e altos rendimentos e alguns jovens entre outras categorias sociais; (2) heterogeneidade sociopolítica, divergindo mediante a região ou país. No grupo de apoiantes podemos encontrar conserva­dores políticos, preservacionistas, antie­litistas ou defensores do mercado livre; (3) determinismo em torno do emprego e rendimento, quando na verdade a edu­ção formal tem um papel preponderante. Para encerrar a caracterização do atual debate público sobre populismo, os auto­res propõem o modelo dos “quatro D”: desconfiança, despojamento, destruição e desalinhamento. Estes constituem–se como os quatro eixos que orientarão a reflexão subsequente.

O capítulo “Promessas”, tem como finalidade a delimitação do objeto de estudo e subsequente conceptualização de populismo. A discussão inicia-se com a caracterização da discursividade popu­lista, que passa por fazer uso de uma linguagem grosseira, comum, articulada com uma postura norteada pelas máxi­mas “nós contra eles” e “o bem contra o mal”. Em termos programáticos apresen­tam um relativo défice, o que também confere a este tipo de ator político uma flexibilidade e maleabilidade incomuns no manuseamento de diferentes cau­sas e o respetivo posicionamento. Entre os temas politizados pelos populistas, a imigração, o anti-elitismo e a corrup­ção são os mais frequentes, sendo que a ênfase em cada um destes é gerida mediante idiossincrasias nacionais e culturais. Os autores empreendem a aproximação ao conceito de populismo através do contraste analítico entre este tipo de movimento político e o fascismo, estabelecendo três eixos contrastantes: (1) vontade popular vs nação holística; (2) pessoas simples e vulgares vs novo homem; (3) elites corruptas e distantes vs uma terceira via autoritária. Rematam o capítulo respondendo de forma categó­rica que o populismo é distinto do fas­cismo, na medida em que os primeiros jogam e não questionam a democracia, apenas querem incrementar transfor­mações nalgumas regras, ao passo que os fascistas propõem uma alternativa autoritária e não-democrática. Com efeito, permitem-se definir populismo nos seguintes termos “(…) ideologia de direito próprio, baseada em três vectores fulcrais: (1) tentativa de dar ouvidos ao popular e agir em conformidade; (2) o apelo de defender os interesses das pes­soas simples e vulgares; (3) o desejo de substituir as elites corruptas e distantes (2019, p. 85). Na continuação assumem por nacionalismo a “(…) convicção de que fazemos parte de um grupo de pessoas que partilham um sentimento comum de história e identidade e que estão unidas por uma noção de missão ou projecto” (2019, p. 85). Conceptua­lizando nacional-populismo, conceito charneira para a restante obra.

O argumento que subjaz ao capí­tulo dedicado à “Desconfiança” postula que “(…) o nacional-populismo reflete, em parte, uma desconfiança das elites profundamente enraizada, que remonta a décadas, e que se espelha agora numa maré crescente de descontentamento público com o poder político instituído” (2019, pp. 92-93). Os regimes demolibe­rais têm revelado algumas insuficiências no cumprimento de três imperativos fun­cionais: (1) igualdade de expressão polí­tica; (2) sociedade tendencialmente justa economicamente; (3) melhor gestão do conflito social. Um quarto elemento diz respeito à emergência do “liberalismo de identidade”, potenciando a polarização social e política, plasmada por exemplo nas redes sociais digitais. Os autores con­cluem que embora desconfiados, a gene­ralidade da base social de apoio populista é democrata.

A “Destruição” reporta-se, de forma muito sintética, ao impacto cultural que a intensificação da globalização acar­retou ao nível dos fluxos migratórios. No fundo, trata de entender como as populações nativas percecionam a pos­sível introdução de novos elementos culturais originários de diversas par­tes do mundo. A imigração, enquanto causa política tem sido politizada pela oferta populista. Em Portugal, a fragi­lidade do populismo deve-se precisa­mente à escassa politização desta questão por parte dos partidos políticos e dos media. Rematam concluindo que “dese­jar políticas de imigração mais rigoro­sas ou um menor número de imigrantes não é, em si, sinal de racismo” (2019,p. 149).

O terceiro “D” reporta-se à condição de “Despojamento” a qual “(…) envolve fortes receios no seio do público de o seu grupo estar a ser prejudicado em rela­ção a outros elementos da sociedade, que para eles se acabou um mundo de prosperidade ascensão social, e com isso não apenas perderam a esperança como também o respeito” (2019, p. 164). Esta condição tem uma dupla componente: material e simbólica, decorrente do pro­fundo processo de metamorfose social imprimido sobretudo pela globalização neoliberal. Do ponto de vista material, a transferência de milhões de posto de tra­balho para países menos desenvolvidos, a diluição e desvalorização dos salários e prestações sociais pesam de forma deci­siva. No plano simbólico, a perceção de diminuição do respeito, reconhecimento e estatuto social comparativamente a grupos sociais emergente, impactam diretamente no apoio populista.

O “Desalinhamento” sintetiza a ideia postulada pelos autores de que “estas mudanças reforçam o fosso entre libe­rais da classe média com formação uni­versitária, os herdeiros da tradicional Nova Esquerda, e uma ampla aliança de conservadores tradicionais e bran­cos com licenciatura, que se mudaram em debandada para a contrarrevolução silenciosa” (2019, p. 207). O conceito de desalinhamento operacionaliza a cres­cente desvinculação cultural e política entre oferta e procura política. Portugal é entendido como um caso com vincado desalinhamento político, em face dos ele­vados níveis de abstenção. Esta asserção assume contornos premonitórios relati­vamente aos resultados das Legislativas de Outubro 2019.

Conclusões – a obra tem o seu cen­tro gravitacional nas raízes culturais do populismo, nos mais diversos contextos em que se exprime. No final são elenca­das três vias futuras de investigação, que resultam da intensificação dos “Quatro D”: (1) aumento das tensões políticas; (2) intensificação da mudança hiperétnica; (3) aprofundamento da perceção de des­pojamento relativo proporcionado pela automação da atividade industrial e eco­nómica. Finalmente, a premissa de que o populismo como fenómeno político com raízes culturais, veio para ficar, pautando a agenda política das democracias libe­rais das próximas décadas.

Os limites e linhas de investigação futura podem ser assim resumidos:

Conceito de cultura liberal – Eatwell e Goddwin (2019, p. 47) definem cul­tura liberal como “(…) uma mentalidade liberal em termos culturais que reforça a tolerância à diferença, é indiferente às hierarquias sociais e privilegia os direitos individuais em detrimento das identi­dades grupais”. Em termos taxonómicos dir-se-ia que este conceito é operaciona­lizado por duas dimensões: a imigração e os direitos da comunidade lgbt. Ao longo da obra os autores são exaustivos na apresentação de evidência empírica relativamente ao alinhamento político e eleitoral da população de diversos países sobre a imigração, distinguindo grupos sociais que partilham valores liberais, em oposição a categorias sociais não liberais, demonstrando o potencial político desta questão. Contudo, nota-se a ausência do mesmo processo de demonstração empírica sobre a questão lgbt e como esta permite distinguir diferentes grupos sociais e políticos mediante o eixo: liberal vs não liberal.

O “quinto D” de digitalização, dando guarida às profundas mudanças socioló­gicas neste domínio:

1º argumento – quebra do monopólio dos media tradicionais – É conhecida a seletividade e elitismo dos media tra­dicionais em Portugal (Salgado, 2019), tendência, aliás, extensível até mesmo à imprensa regional (Morais e Sousa, 2013). Este facto tornava o ecossis­tema mediático português praticamente imune a manifestações populistas, fosse de atores populistas, fosse através da dis­cursividade dos media. Esta pautava-se pela difusão dos valores liberais, como os direitos lgbt ou dos imigrantes, aquilo que mais recentemente se veio a designar entre os meandros populistas de agenda do “politicamente correto”. Contudo, com a emergência dos novos media sociais, como o Facebook e o Twitter, assistiu–se a uma tendencial democratização na produção e difusão de conteúdos, o que veio a colocar em causa as regras taxitas no ecossistema mediático português e com isso o monopólio do agendamento noticioso e informativo.

2º argumento – comunicação não mediada – Concomitantemente ao ponto anterior, há relativo consenso, entre a literatura relevante (Judis, 2017; Mudde & Kaltwasser, 2017; Müller, 2017) que o populismo nas suas diversas expressões tem como característica basilar a lide­rança forte e carismática. Beneficiando do incremento da comunicação direta e não mediada, contornando o enqua­dramento necessário que o trabalho jornalístico constrói, conseguindo deste modo chegar aos cidadãos e eleitores de forma não mediada, como acontece nos setores tradicionais de media como a imprensa escrita, rádio e televisão, que tantas vezes são os alvos principais dos ataques dos líderes populistas e dos seus movimentos ou partidos. Deste modo, o populismo tem na comunicação direta uma das suas principais “armas” ao fazer–se chegar a um público crescentemente diverso e heterogéneo, ao dispensar a mediação jornalística.

3º argumento – propaganda compu­tacional – são crescentes e múltiplas, as suspeitas e alegações sobre possíveis interferências externas nalguns processos eleitorais, como na Índia (Gopalkrish­nan, 2018), ou na China (Bolsover, 2017). O caso mais discutido foi a eleição presidencial de Donald Trump nos eua em 2016, na qual existiu uso massivo de ferramenta de programação algorítmica (Benkler, Faris, Roberts, 2018), de modo a expor determinado tipo de conteúdos específicos a potenciais votantes e assim condicionar o sentido de voto. Estes fac­tos dão corpo a uma tendência de inter­ferência direta no sentido de voto das populações.

Na esteira da tradição weberiana, o tipo-ideal de populismo terá, em nosso entender, de contemplar toda a complexidade associada ao processo de digitali­zação das sociedades globais hodiernas.

Referências Bibliográficas

Benkler, Y., Faris, R., Roberts, H. (2018), Network Propaganda: Manipu­lation, Disinformation, and Radicaliza­tion in American Politics, Nova Iorque, Oxford University Press.

Bolsover, G. (2017), “Computational propaganda in China: an alternative model of a widespread practice.” In S. Woolley, P. N. Howard (Eds.), Working Paper, Oxford, UK, Project on Computa­tional Propaganda. Disponível em: http://comprop.oii.ox.ac.uk/ [consultado em 12-12-2019].

Eatwell, R., Goodwin, M. (2019), Populismo, A Revolta Contra a Democra­cia Liberal, Porto Salvo, Desassosego.

Gopalkrishnan, S. (2018), “The Trump campaign computational propaganda challenge for the Indian parliamentary elections 2019”. Media Watch, ix (1), pp. 79-88.

Judis, J. B. (2017), A Explosão do Popu­lismo, Lisboa, Editorial Presença.

Morais, R., Sousa, J. C. (2013), “As prá­ticas jornalísticas na imprensa regio­nal: a selecção das fontes e a promoção de desigualdades sociais”. Observatorio, 7(1), 187-204. https://doi.org/10.7458/obs712013518.

Mudde, C., Kaltwasser, C. R. (2017), Populismo: uma Brevíssima Introdução, Lisboa, Gradiva.

Müller, J. W. (2017), O que é o Popu­lismo?, Alfragide, Texto Editora.

Salgado, S. (2019), “Where’s populism? Online media and the diffusion of popu­list discourses and styles”. Portugal Euro­pean Political Science, 18(1), pp. 53-65 https://doi.org/10.1057/s41304-017-013 7-4.

Sousa, J. C. (2020), Recensão “Populismo, a Revolta Contra a Democracia Liberal, Porto Salvo, Desasso­sego, 2019”. Análise Social, 234, lv (1.º), pp. 209–214.

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