Resumo
Iniciamos nosso estudo com uma contextualização histórico-crítica da teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver, reconhecendo a importância de sua influência na consolidação da ciência da informação nos Estados Unidos e apontando os limites de sua intenção unidimensional. A análise serve de mote para a apresentação da teoria crítica da sociedade, desenvolvida no mesmo período por filósofos alemães da chamada Escola de Frankfurt. Seus fundamentos teórico-metodológicos irão nortear nossa proposta para uma teoria crítica da informação, pensada a partir da integração de dois conceitos caros à ciência da informação brasileira: o de regime de informação, entendido como recurso interpretativo para pensar as relações entre política, informação e poder, e o de competência crítica em informação, que traz contribuições da teoria frankfurtiana e da pedagogia freireana para sublinhar a avaliação crítica e o uso ético da informação. Nosso método sugere a proposição de um diagnóstico das potencialidades, limites e contradições dos regimes de informação dominantes, e encontra na gramática da competência crítica em informação o referencial de uma práxis voltada à ampliação da autonomia dos indivíduos no atual ecossistema informacional, fundamental para o exercício da cidadania em tempos de desinformação, mediação algorítmica, vigilância digital e ataques à privacidade.
Palavras-chave: Teoria crítica da informação; Teoria matemática da comunicação; Regime de informação; Competência crítica em informação; Competência em informação
Fonte: Perspectivas em Ciência da Informação. versão On-line ISSN 1981-5344. Perspect. ciênc. inf. vol.25 no.3 Belo Horizonte jul./set. 2020. Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0) (creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt)
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Da teoria matemática para uma proposta de teoria crítica da informação: a integração dos conceitos de regime de informação e competência crítica em informação
Arthur Coelho BezerraI
http://orcid.org/0000-0001-5445-6263
I Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), RJ,Brasil. Professor do Programa de Pósgraduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ).
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4 PROPOSTA PARA UMA TEORIA CRÍTICA DA INFORMAÇÃO
Por que as coisas são como são e não de outra forma? Quais os obstáculos que impedem que as coisas sejam melhores do que são? Como agir para vencer tais obstáculos e transformar o mundo? É sobre esses três pilares que se ergue o edifício filosófico da teoria crítica.
Conforme visto, a primeira pergunta traça um horizonte fundamentalmente distinto da perspectiva positivista (ou da “teoria tradicional”, nos termos de Horkheimer). Esta dedica-se a investigar e observar o mundo como ele é, para estabelecer leis e padrões que permitam a previsão de fenômenos e comportamentos – objetivos contemplados pela teoria matemática de Shannon e Weaver. A teoria crítica, por sua vez, possui um caráter transcendente: além de compreender o mundo tal como ele é, propõe um exercício de imaginação a respeito de como o mundo poderia ser. Tal exercício nada tem de utópico; antes, é construído a partir das possibilidades imanentes do mundo material. A busca por uma resposta revela que, dadas as condições reais de existência, as coisas poderiam ser melhores, mas não são. Assim, chegamos a uma nova pergunta, a respeito dos obstáculos que fazem com que as coisas sejam como são e não de outra forma. Essa pergunta, complementar à primeira, é acolhida pela teoria crítica mediante uma proposição metodológica: a realização de diagnósticos de época. Ao identificar os obstáculos que impedem que as coisas sejam melhores, o processo analítico realizado no diagnóstico pretende dar respostas a ambas as questões.
Por fim, a dúvida sobre o que deve ser feito para superar tais obstáculos exige uma solução de ordem prática, fornecida pela teoria crítica através da perspectiva da práxis transformadora, ou seja, de que a proposição de diagnósticos de época seja capaz de revelar não apenas as contradições existentes, mas também os elementos que orientam a ação com vistas à superação de tais obstáculos. Nesse sentido, o objetivo final da teoria crítica não é de ordem filosófica e intelectual, e sim ética.
A teoria crítica da informação que propomos segue os mesmos passos teóricos e metodológicos da teoria crítica, adaptando-os ao campo de investigação dos estudos informacionais por meio da absorção e integração de dois conceitos que vêm sendo discutidos na área, especialmente em congressos e publicações acadêmicas brasileiras: o conceito de regime de informação e o conceito de competência crítica em informação.
4.1 REGIME DE INFORMAÇÃO
Maria Nélida González de Gómez, filósofa e pesquisadora argentina há muito tempo radicada no Brasil, define em 1999 a chamada “sociedade da informação” como “aquela em que o regime de informação caracteriza e condiciona todos os outros regimes sociais, econômicos, culturais, das comunidades e do Estado” (1999, p. 2). Desde então, a autora tem se dedicado a desenvolver o conceito de regime de informação, trazendo contribuições de autores de distintos matizes de pensamento, como Sandra Braman, Mark Poster e HamidEkbia. 20 anos e muitas publicações depois, González de Gómez segue decantando suas reflexões sobre o que chama de “genealogia dos regimes de informação”, destacando que a visibilidade do cenário histórico que contextualiza os usos do conceito permite observar “traços das potencialidades e fragilidades das concepções das sociedades-redes”, atualizando as discussões acerca das “arquiteturas regulatórias das sociedades contemporâneas” (2019, p. 156).
O pioneirismo do uso do termo regime de informação é atribuído pela autora a Bernd Frohmann, que se vale da expressão régime of information, em uma conferência ministrada em 1995, como forma de criticar a falta de atenção de pesquisadores da ciência da informação à dimensão efetivamente política das políticas de informação. Para o filósofo,
descrever um regime de informação significa mapear os conflituosos processos que resultam em estabilizações provisórias e inquietas de conflitos entre grupos sociais, interesses, discursos e até mesmo artefatos científicos e tecnológicos” (1995, s/p.).
Atento ao caráter social da informação, Frohmann enfatiza a importância da análise das práticas que conformam desigualdades e formas de dominação em regimes específicos de informação. Com isso, o autor deseja fugir de uma visão instrumental que se limita à eficiência e eficácia de fluxos informacionais, sem considerar a mútua implicação e dependência entre ciência, tecnologia, relações sociais e discursos de poder.
Em termos gerais, tanto Frohmann quanto González de Gómez apresentam uma visão que, evitando enxergar as estruturas de um regime de informação de forma desencarnada, opere com este conceito como uma espécie de “recurso interpretativo” (nas palavras da filósofa) para investigar as relações entre política, informação e poder.
Entre as atribuições dos regimes de informação, uma das principais seria colocar em evidência essa tensão entre as configurações socioculturais das interações em que se manifestam e constituem os diferenciais pragmáticos de informação, e as estruturações jurídico-normativas, técnico-instrumentais e econômico-mercadológicas, que visam a sobre determinar essa configuração, com alguma imposição de direção ou valor” (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2012, p. 56).
As características, inquietações e tarefas que autora e autor depositam no conceito servem de inspiração para a proposta de diagnóstico daquilo que percebemos tratar-se de um novo regime de informação, tarefa a ser realizada, e de tempos em tempos atualizada, como parte de nosso programa para uma teoria crítica da informação. Em tal diagnóstico, os fenômenos de vigilância e monitoramento digital de dados pessoais de usuários da internet, filtragem algorítmica da informação, circulação de notícias falsas e demais técnicas de desinformação que grassam no regime de informação contemporâneo são considerados a partir de suas perspectivas negativas de controle, manipulação, exclusão e opressão que figuram como obstáculos à privacidade, liberdade e autonomia informacional de grupos sociais e indivíduos.
4.2 COMPETÊNCIA CRÍTICA EM INFORMAÇÃO
Desenvolvido na primeira década do século XXI como forma de crítica às normas e convenções institucionais associadas à competência em informação (information literacy), bem como forma de incentivo à luta de estudantes contra as estruturas de poder que sustentam a produção e a disseminação dominante da informação (TEWELL, 2015, p. 25), o conceito de competência crítica em informação complementa nossa perspectiva teórica servindo de horizonte para as perspectivas de emancipação social, a partir do desvelamento de possíveis caminhos para a práxis transformadora no cerne dos regimes de informação vigentes. A práxis, em sentido geral, representa a interação entre consciência e atividade, configurando um ciclo teórico-prático em que a teoria, posta à prova na prática, estimula a reflexão que, a partir das contradições observadas, tem o condão de alterar a teoria inicial; esta, por sua vez, é novamente posta em prática, porém sob novas circunstâncias que trazem outros desafios, e assim é submetida a uma nova reflexão, fazendo desse movimento dialético o próprio motor da história.
Com esse entendimento, Marx observa que é a partir da realidade material que os indivíduos criam suas instituições e seus deuses, e que a moral, o direito, a política e a economia são forjados a partir de circunstâncias reais e não em um plano metafísico. Em resumo, Marx compreende que é o ser social que determina a consciência, e não o contrário, como supunham os filósofos alemães perante os quais Marx estabelece um distanciamento epistemológico. Essa distância se revela de maneira explícita nas Teses sobre Feuerbach, escritas em 1845, em que Marx afirma que “toda vida social é essencialmente prática“; que “todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis”; e que “a coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou automudança só pode ser considerada e compreendida racionalmente como práxis revolucionária” (MARX, 1998, p. 99-103, grifos do autor).
Na conhecida tese onze, Marx escreve: “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo” (MARX, 1998, p. 103, grifos do autor). Dos pensadores que se filiaram à concepção filosófica marxista, o educador brasileiro Paulo Freire destaca-se como um dos que se mostram explicitamente engajados com a “práxis revolucionária”. Sua Pedagogia do Oprimido (2016) parte da perspectiva histórica e da historicidade dos indivíduos, fornece um diagnóstico que percebe a contradição opressor-oprimido presente na realidade (e reproduzida na educação) brasileira, bem como os obstáculos que impedem tal sistema de atuar como força motriz para a emancipação popular, e propõe uma perspectiva pedagógica comprometida com a superação de tal estado de coisas. Para Freire, “se os homens são produtores desta realidade e se esta, na ‘inversão da práxis’, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens” (FREIRE, 2016, p. 51).
Conforme demonstra as pesquisas de Eamon Tewell (2015) e de Arthur Bezerra e Aneli Beloni (2019), a pedagogia crítica desenvolvida por Paulo Freire é amplamente citada nas bibliografias de artigos sobre critical information literacy, seja em trabalhos estrangeiros ou em textos publicados no Brasil. Autores como Michelle Simmons (2005) e James Elmborg (2006) destacam a necessidade de desenvolver, nos estudantes, a consciência e a prática crítica para que assumam o controle de suas vidas e de seu próprio aprendizado, tornando-se agentes ativos no mundo em que vivem (ELMBORG, 2006, p. 193). Segundo Simmons, “ajudar os alunos a examinar e questionar o contexto social, econômico e político para a produção e o consumo de informações é um corolário vital para o ensino das habilidades de competência em informação” (SIMMONS, 2005, p. 299).
Podemos, nesse sentido, admitir não apenas que o caráter ativo da competência crítica em informação atende à perspectiva de prática emancipatória que integra nossa proposta de teoria crítica da informação, mas que a sua própria efetividade está condicionada ao desenvolvimento de uma consciência crítica a respeito dos regimes de informação em que os indivíduos estão inseridos, com destaque para o regime de informação dominante que vigora no ambiente digital.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para o sociólogo austríaco Christian Fuchs, uma teoria da informação que se pretenda crítica deve analisar não apenas o papel da informação e dos conceitos de informação na sociedade, na academia, na natureza, na cultura e em outras dimensões, mas também ocupar-se de identificar “como ela está relacionada aos processos de opressão, exploração e dominação, o que implica um julgamento normativo em solidariedade aos dominados e em prol da abolição da dominação” (FUCHS, 2009, p. 245). As temáticas estudadas no âmbito de tal teoria, complementa Araújo, precisam envolver questões como o “acesso à informação por parte de grupos e classes excluídos e marginalizados, a criação de formas e sistemas alternativos de informação, e mesmo estudos sobre a contrainformação, como forma de rejeição aos regimes informacionais hegemônicos” (ARAÚJO, 2009, p. 197). Queremos crer que tanto as análises sugeridas por Fuchs quanto as temáticas listadas por Araújo estão contempladas em nosso projeto.
Com a integração dos conceitos de regime de informação e competência crítica em informação, a nosso ver complementares e de certa forma interdependentes, a proposta de teoria crítica da informação que apresentamos na forma de um programa teórico-metodológico tem a pretensão de atingir a musculatura necessária para hipertrofiar, com as armas da crítica, a academia de saberes da ciência da informação, respeitando o legado das pesquisadores e pesquisadores que atuaram ou têm atuado nesse sentido. Sendo assim, concluímos o presente trabalho reformulando as problemáticas da teoria crítica, tal como foram aqui apresentadas, de modo a adaptá-las às questões que sugerimos como inspiração para futuras pesquisas e estudos críticos em informação:
- 1) Por que os regimes de informação são como são e não de outra forma?
- 2) Quais os obstáculos que impedem que os regimes de informação sejam melhores do que são?
- 3) Como agir para vencer tais obstáculos e transformar os regimes de informação?
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Recebido: 21 de Junho de 2019; Aceito: 30 de Julho de 2020
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