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A Educação Como Paideia

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Resumo

A reflexão filosófica no campo da educação faz-se necessária à formação do investigador teórico, por ser uma referência histórica e conceitual que propicia a interrogação radical das contradições relativas à produção do conhecimento e da cultura. Neste trabalho buscamos desenvolver o conceito de paideía estabelecendo uma contraposição à concepção utilitarista da educação no contexto da sociedade da informação, que visa unicamente atender às demandas do mercado de trabalho. Ao interrogar o verdadeiro sentido da formação buscando a gênese da cultura ocidental, pretendemos contribuir para o debate teórico da educação. A paideía grega como critério orientador para pensar a formação possibilita despertar a consciência crítica e o olhar para a formação como fator de humanização do homem.

Palavras-chave: Paideia; Formação; Educação; Cultura

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A Educação Como Paideia: Uma Interrogação Sobre o Sentido da Formação Humana

Silvana Bollis1

Fonte: Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v.21, n. esp., p.261-274, jul./dez. 2013

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

 

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho abordamos a educação como paideía2 no sentido do termo grego. Uma pesquisa bibliográfica, que pensa a problemática da vida coletiva, na condição de “ser que não se basta a si mesmo” (PLATÃO, 2000, Rep. II, 369b). Buscamos embasamento teórico em Jaeger, na sua obra Paideia: A formação do homem grego, considerada um clássico da educação e da história da filosofia antiga e que permite compreender os sentidos da formação implicados no projeto de construção da pólis3 grega, cidade perfeita e da formação no sentido da constituição do homem virtuoso, excelente.

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1 Mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Vinculada ao PPGE- Programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFG.

2 Jaeger (2003, p.1) nenhuma expressão moderna como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação coincide realmente com o que os gregos entendiam por paideía. Ver República, VII, 518d 3-4.

3 Definição do Glossário de termos gregos de Coêlho (2009), cidade-Estado, imediações da cidade, reunião de cidadãos num certo território e sob o jugo da lei, a mais perfeita forma de associação humana, a comunidade política por excelência.

 

A formação para os gregos é o critério utilizado para pensar criticamente a educação na atualidade e, junto com Adorno, Horkheimer e Lima Vaz, pensar o sentido da educação e da cultura na sociedade da informação e da tecnologia. Concordamos com Habermas apud Romano (1987, p.13) em relação a sua “fé militante no diálogo, a mais humana das tradições educacionais inventadas pelo Ocidente”.

Jaeger (2003, p. 12) justifica a importância do legado deixado pelos gregos afirmando que “aprendemos muito dos Gregos” desde a estabilidade das formas de pensamento e da arte até a “criação mais bela do espírito grego […] a filosofia. […] Os Gregos buscaram a ‘lei’ que age nas próprias coisas, e procuraram reger por ela a vida e o pensamento do homem.” Ao pensar a paideía Jaeger (2003, p.13) demonstra que

Colocar estes conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é uma ideia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo artista e pensador. […] Os Gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser um processo de construção consciente.

A paideía é um nome simbólico e a designação de um tema histórico, uma força formadora imbricada no espírito Grego. Um conceito de grande amplitude que entendemos contribuir para pôr em questão a educação e a sociedade atual. Jaeger (2003, p. 12) afirma “[…] a ideia platônica, produto único e específico do espírito grego, nos dá a chave para interpretar a mentalidade grega em muitas outras esferas”.

A grande verdade educacional que a República ilustra plasticamente é a estrita correlação entre a forma e o espaço […] uma lei do mundo moral”. […] O próprio conceito de paradigma tem já implícita a impossibilidade da sua plena realização, a não ser, quando muito, de forma aproximativa. Reconhecer isto não significa tachar o ideal, como tal, de imperfeição. Tal como a imagem do ser humano mais belo conserva sempre, como obra filosófica, o seu valor de beleza, que é independente de toda a consideração de ordem prática. No entanto, a caracterização da imagem socrática como modelo implica também uma certa relação com o insaciável impulso humano de imitação. É sobre estes dois conceitos procedentes da Grécia primitiva, o de paradigma e o de mimesis, modelo e imitação, que toda a paideía grega assenta. A República de Platão representa uma nova etapa dentro dela (JAEGER, 2003, p. 837).

Coêlho (1996, p. 121), nos orienta a tomar “[…] o texto como algo a ser compreendido em seus conceitos fundamentais e em suas articulações lógicas […]” e, ao aceitar sua provocação, estendemos a reflexão em outros campos, “tomando-o como um “pré-texto” para pensar o real” e com esta atitude, pensar a prática educativa em seu contexto. O objetivo deste artigo é pensar a formação humana e o sentido da cultura a partir do parâmetro da Paideia grega. É possível uma formação emancipadora no atual contexto da sociedade capitalista globalizada? Esta é a questão fundamental a ser pensada neste trabalho.

 

2 OS GREGOS E O NASCIMENTO DA CULTURA OCIDENTAL

Entre os séculos VIII e VII surge a pólis que, segundo Vernant (2004, p.53), se constitui em um “acontecimento decisivo” na história do pensamento grego, no “plano intelectual como no domínio das instituições”.

O surgimento da cidade implica uma

extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. Torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem.[…] A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação. […] A arte política é essencialmente o exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política (VERNANT, 2004 p. 53-54).

Jaeger (2003, p.3) afirma que todo o povo que atinge certo grau de desenvolvimento é inclinado à prática da educação, “o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existência humana”. A especificidade da natureza do homem, cria “condições especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. […] A educação não é propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade”.

Ao falar dos sofistas Hadot (2008, p. 33) explica que “por um salário, eles ensinavam a seus alunos receitas que lhes permitissem persuadir os ouvintes”. Platão faz duras críticas aos sofistas, chamando-os de “comerciantes do saber” e considerando perigosa uma educação que atende às necessidades da juventude de obter êxito na política. Diferentemente dos filósofos, os sofistas, primeiros pedagogos, concebiam a areté4 como mera competência técnica, o que corresponde na atualidade, a se reduzir a educação à formação para o mercado.

Hadot (2008, p.116) ao referir-se às Formas, demonstra que elas “são, sobretudo, valores morais que fundam nossos juízos sobre as coisas da vida humana” o que significa determinar por meio do estudo da “medida própria a cada coisa, esta tríade de valores” que aparece na trajetória dos diálogos: “o que é o belo, o que é o justo e o que é o bem. O saber platônico, como o socrático é antes de tudo, um saber dos valores”.

As Formas segundo Goldschmidt (1963, p. 22) “são os modelos, não somente daquilo que devém, mas ainda daquilo que fazemos devir”, uma Forma que devemos imitar em nossos “atos e obras”. O que significa que o conhecimento das Formas é indispensável à constituição da capacidade de deliberação consciente, ou da formação do ser autônomo. Daí a compreensão da educação como a formação do homem excelente, mostrada por Jaeger (2003, p.837)

O homem perfeito só num Estado perfeito se pode formar, e vice-versa: a formação deste tipo de Estado é um problema de formação de homens. É nisto que se baseia o fundamento da correlação absoluta que existe entre a estrutura interna do Homem e a do Estado, entre os tipos de Homem e os tipos de Estado. E isto explica igualmente a contínua tendência de Platão a sublinhar a atmosfera pública e a sua importância para a formação do Homem.

Em Platão (República IV, 436-b) são três as faculdades da alma, a racional, a irascível e a apetitiva, sendo que o intelecto deve ocupar o primeiro lugar, como explica Reale (2002, p.249)

Verificamos em nós três diferentes atividades: a) pensamos; b) nos inflamamos e nos enchemos de ira; c) desejamos os prazeres da geração e da nutrição.[…] Pela sua natureza, a irascível está do lado da razão, mesmo não sendo razão, mas pode igualmente aliar-se com a parte mais baixa da alma, se for estragada pela má educação.

A doutrina das virtudes ou qualidades da alma encontra sua correspondência no plano da vida da comunidade, da pólis, na tripartição das funções dos cidadãos na cidade: os governantes, os guardiões e os produtores.

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4 Coêlho (2009, p. 216) Areté, és é um termo que significa força, capacidade, aptidão, excelência corporal, intelectual, psíquica, moral , política e artística, virtude, qualidade, mérito, perfeição, nobreza, valor que faz do indivíduo um excelente cidadão, […] Refere-se, pois, aos traços de caráter que destacam positivamente um indivíduo diante dos demais, a uma qualidade presente no homem, aquilo que constitui um ideal de excelência para os membros da pólis e, portanto, para todos os humanos, ideal a ser observado e perseguido na paideia, na formação, na educação do homem excelente, áristos, superlativo de agathós, bom.

 

A temperança (sophrosýne), o autocontrole dos comportamentos e dos prazeres excessivos é a virtude da alma toda e da sociedade, possibilitando a harmonia, o equilíbrio entre as espécies da alma e os grupos da pólis. A coragem (andréia), virtude dos guardiões que possibilita manter na alma e na cidade uma avaliação na justa medida do que é um verdadeiro bem ou mal. A sabedoria (sophía), virtude que possibilita a compreensão racional das Formas, principalmente o Bem. Segundo Ricken (2008), o Bem não pode ser explicado por outro conceito, como vemos n’A República.

O que comunica a verdade aos objetos conhecidos e ao sujeito cognoscente a faculdade de conhecer, […] é a ideia do bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; […] assim como […] a luz e a visão têm analogia com o sol, porém que seria erro identificá-los com ele, agora podemos considerar o conhecimento e a verdade como semelhantes ao bem, sem que nenhum, no entanto possa ser com ele identificado, pois a natureza do bem deve ser tida em muito maior apreço. […] O mesmo dirás dos objetos conhecidos, que não recebem do bem apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também a essência, conquanto o bem não seja a essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e dignidade (PLATÃO, Rep., VI, 508e 1-8, 509a 1-7 e 509 b 8-12).

Sendo a harmonia das três outras virtudes, a justiça (díke) permite manter a ordem na alma e na pólis.

Ao falar sobre a unidade da virtude, Jaeger (2003) põe a questão do conhecimento na paideía platônica como sintetização de todas as virtudes numa só virtude, a partir da qual seria possível conhecer todas. A areté é a virtude em si, a ideia do Bem. E demonstra que Platão projeta sobre o melhor Estado possível, a convicção socrática de que a virtude consiste no conhecimento do Bem. A possível edificação da comunidade humana sobre essa base, por meio da educação, supõe e exige os esforços de todos os cidadãos.

Julgar e escolher, no seu sentido mais radical, foram atividades criadas na Grécia; é este um dos sentidos da criação grega da política e da filosofia […] É na Grécia que encontramos o primeiro exemplo de uma sociedade deliberando explicitamente acerca de suas leis, e modificando-as […] Esta atitude conduz a outra questão que também nasce na Grécia- não se pergunta apenas: esta lei que está aqui é boa ou é má? Mas sim: o que é, para uma lei, ser boa ou ser má- em outras palavras: o que é a justiça? (CASTORIADIS, 1987, p. 290, apud Valle, 2002, p.150).

Por tratar de questões que nos envolvem e inquietam, nossa admiração à cultura grega antiga foi tal que, no momento em que nossos mestres nos apresentaram os textos de Platão, assumimos “ler os clássicos gregos do pensamento, de uma forma bem diferente, não à luz da superioridade crítica da Modernidade” que considera a sua lógica superior à tradição dos antigos. Compreendendo que, em relação ao que nos constitui humanos, “não existe nenhum progresso, mas apenas participação”, fizemos a opção por estudar tais clássicos, adotando a atitude filosófica da procura constante pelo sentido, no exame das questões que permeiam a nossa própria existência (GADAMER, 2009, p. 6).

 

3 A FORMAÇÃO E A CULTURA

Historicamente as questões da educação estão imbricadas numa relação de natureza intrínseca com a sociedade, o que justifica a afirmação de Coêlho (2009, p. 204-205) que “interrogar a educação é perguntar qual o sentido e a finalidade da existência coletiva e individual, das obras de cultura, em sua complexidade, historicidade, contradições e ambiguidades, em seu fazer-se ao mesmo tempo múltiplo e inseparável do Uno”. A formação é um processo a ser desenvolvido na tensão e nos embates contraditórios que caracterizam as questões da práksis, esfera do agir humano em que a ação e o seu resultado são inseparáveis, pela própria natureza das questões do campo da ética e da política.

O paradigma da sociedade justa como criação humana pensada por Platão n’A República nos orienta ao questionamento das formas assumidas pela educação na sociedade do “conhecimento” e da tecnologia, e nos remete a perguntar: Qual o sentido da educação e da nossa sociedade?

O conceito de cultura que orienta o nosso trabalho é o do olhar da filosofia. Concordamos com a correlação feita por Lima Vaz (2002, p.3) entre os termos filosofia e cultura, onde ele demonstra que a “universalidade da intenção filosófica […] abrange todos os campos da cultura” e ao mesmo tempo, a “singularidade do modo de pensar filosófico, que, ao penetrar os diversos domínios da cultura”, faz com que esta cultura seja obrigada a “dar razão de si mesma, isto é a justificar-se filosoficamente”.

Como demonstra Lima Vaz (2002, p.4)

A inquieta e questionadora presença da filosofia na cultura, ou na morada que o homem refaz constantemente para tornar possível a sobrevivência na terra, apresenta uma dupla face de necessidade latente, que já pulsa nos primeiros vestígios da cultura pré-histórica e nos quais está inscrita a inquietação pelo ser e pelo sentido; e um paradoxo patente no fato de que interrogar-se sobre o ser e o sentido significa justamente pôr em questão os fundamentos dessa morada que o homem penosamente constrói e que deveria ser para ele a extensão do seguro abrigo da natureza.

Desde o tempo de Platão podemos perceber a dualidade na concepção de educação. Para os sofistas ela assume uma finalidade prática de “formação de homens de Estado e dirigentes da vida pública”, diferente da concepção platônica de formação do homem virtuoso (JAEGER, 2003, p. 540).

Para Lima Vaz (2002, p.30-31), “o platonismo apresenta-se […] como um arquétipo para a vida intelectual do Ocidente”, a partir daí, foi possível construir o que mais tarde foi chamado de Metafísica, onde é demonstrada a necessidade teórica da filosofia. Saber esse que Platão denominou dialética: “a dialética é o termo da paideia filosófica nos diálogos da maturidade […], porém não tem para Platão a estrutura formal de uma disciplina filosófica como terá a filosofia primeira de Aristóteles”. A dialética como método deve ser entendida como caminho. “A dialética indica o caminho das aporias5 nas quais viera enredar-se o desenvolvimento histórico da cultura”.

O conceito de ideologia faz-se necessário para a compreensão da abordagem deste trabalho, onde se concebe a educação como formação humana e crítica. Chauí (1990, p.3) define a ideologia como “forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, […] é o ocultamento ou dissimulação do real”.

Numa interrogação radical, o sentido do atual discurso da educação para a cidadania aparece banalizado, sem o sentido originário de polítes, e dissociado da concepção Aristotélica de homem definido como zôon politikón6. Esvaziada do seu sentido pleno, a cidadania moderna resume-se ao exercício do direito ao voto, mais um elemento de promoção do “discurso competente”, instituído que, perdida a sua força instituinte, pode servir à “suposta neutralidade racional de uma certa forma de dominação” (CHAUÍ, 1990, p.6).

A linguagem corrente obscurece diferenças, dilui matrizes e reduz antagonismos. Esse processo se materializa no encolhimento do espaço público e no alongamento do espaço privado sob os imperativos da nova forma de acumulação do capital, conhecida como neoliberalismo. Uma das consequências dessa situação é a transformação de direitos econômicos e sociais em serviços definidos pela lógica do mercado e pela transformação do cidadão em consumidor. […] Dessa forma, a força da palavra substitui a da coisa, da ideia, do fato; e quanto mais realidade falta à coisa, mais a palavra é necessária para compensar o “reino da violência artificial (Cruz, 2009, p.68).

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5 Japiassú e Marcondes- Dicionário Basico de Filosofia: 1. Dificuldade resultante da igualdade de raciocínios contrários, colocando o espírito na incerteza e no impasse quanto à ação a empreender. 2. Dificuldade irredutível, seja numa questão filosófica, seja em determinada doutrina. Em outras palavras, dificuldade lógica insuperável num raciocínio. Uma objeção ou um problema insolúvel: tudo o que faz com que o pensamento não possa avançar. Ex:os vínculos entre o espírito e o corpo constituem uma aporia para a maior parte das doutrinas filosóficas.

6 Mossé (2004, p. 241) Dicionário da Civilização Grega significa um animal “político”, ou seja, feito para viver na polis.

 

Nas “tramas” do discurso que muda o significado das palavras, o termo cultura passa por uma mudança semântica, afastando-se do sentido de cultivo de faculdades mentais e espirituais. Cevasco lembra que “o sentido das palavras acompanha as transformações sociais ao longo da história e conserva em suas nuanças e conotações, muito dessa história” (2008, p.11). O termo cultura que, até o século XVIII designava uma atividade, a cultura de alguma coisa, a partir da Revolução Industrial do século XIX, torna-se sinônimo de civilização, justificando assim a “conotação imperialista” de conquista e exploração de outros povos, termo correlato à civilização que carrega uma reação e uma crítica à sociedade em intenso movimento de transformação, na defesa dos valores humanos. “A aplicação desse sentido às artes, como às obras práticas que representam e dão sustentação ao processo geral de desenvolvimento humano” afirma-se a partir do século XX. “Em meados desse século os sentidos preponderantes da palavra eram, além da acepção remanescente da agricultura; […] um modo de vida específico” (Ibid., p.10-11).

Williams (apud CEVASCO, 2008), um dos fundadores dos estudos culturais, já percebe o encaminhamento do desvio das questões relativas aos conflitos políticos e econômicos para o cultural, que marca o nosso tempo presente, em que os meios de comunicação reforçam a ideologia neoliberal, ao afastarem os problemas sociais de seu desenvolvimento histórico e de sua verdadeira causa.

Ao perguntar o que a história pode nos dizer sobre a sociedade contemporânea, Hobsbawm (1998, p.39) afirma a necessidade imprescindível de se ter uma postura intelectual que busque situar historicamente as questões inerentes a nossa própria existência, estabelecendo uma relação dialógica entre o presente e o passado, visto que, “os humanos são quase os mesmos, e as situações humanas são, de tempos em tempos, recorrentes”.

No resgate e na indagação da memória do passado se faz emergir a possibilidade de pensar radicalmente o presente, tomando consciência das nossas origens, despojando a vida moderna de sua autossuficiência, que engessa a nossa imaginação e impede a compreensão de que já houve outras formas de existência, o que nos obriga à reflexão sobre as nossas posturas teóricas, crenças e preconceitos, despertando a nossa vontade à consciência das próprias escolhas.

 

4 A FORMAÇÃO E A INDÚSTRIA CULTURAL NA SOCIEDADE TECNOLÓGICA

No contexto da sociedade globalizada, os discursos, frutos do trabalho das mídias, promovem o consumo em níveis cada vez mais exacerbados.

Os defensores da expressão “cultura de massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, que diverge frontalmente nessa interpretação, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema (ARANTES,1991, p.IX).

Ao libertar-se do medo, da magia e do mito, o homem acabou se tornando escravo da técnica e da ciência. Vítima da falácia do progresso como portador de melhores condições de vida para todos, é enganado pelo discurso neoliberal e suas promessas de democracia, que de fato não se efetivou, não passa de um engodo, já que significa apenas o exercício do direito ao voto, termo equivalente ao de cidadania. Valle (2002, p. 289) lembra que “no mundo grego a participação política dos cidadãos envolvia as deliberações sobre as leis e sobre os destinos da cidade”. Sabemos que após a Revolução Francesa essa participação foi restringida pela delegação aos “representantes” que passaram a deliberar em nome do povo.

Adorno & Horkheimer (1985) demonstram que, ao contrário da promessa humanista do século XVIII, a razão que levaria a autonomia e a liberdade limitou-se à instrumentalidade, o que na esfera social significa o que os autores denominam mundo administrado ou sociedade burocratizada. A promessa de autonomia resultou em heteronomia.

Um dos aspectos da cultura demonstrados por Adorno & Horkheimer (1985) é que na contemporaneidade ela confere a tudo um ar de semelhança. Os valores exorbitantes das cifras dos rendimentos da indústria cultural, não deixam dúvidas quanto à necessidade social dos seus produtos, já fortemente arraigada na constituição mesma dos sujeitos.

A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem (ADORNO & HORKHEIMER,1985,p.113-114).

A concorrência e a possibilidade de escolha não passam de ilusão, pois pré-determinadas pelo sistema de dominação. Na sociedade do simulacro, a produção alucinante de mercadorias que imediatamente tornam-se obsoletas, a cultura também é produzida nos mesmos moldes, revestida num invólucro brilhante que desperta o fascínio e deixa o consumidor deslumbrado. As promessas de felicidade levam ao consumo compulsivo de produtos que aparentemente são apresentados como maravilhas, mas ao buscarmos sua essência, percebemos que não passam de lixo, e servem além da acumulação do capital, a (des)educação das massas. Entendemos por massa, a definição de Chauí (1990, p. 147) como “o agregado amorfo e sem fisionomia dos receptores do conhecimento”.

Em relação à formação no mundo da efemeridade, Coêlho (2006, p. 48) nos propõe a interrogação

Se a tecnologia, o mundo da produção e do trabalho mudam continuamente, porque a preocupação reducionista de ensinar os alunos a operarem as máquinas e os equipamentos, a utilizarem as tecnologias e os recursos da microeletrônica? Ao se formarem, grande parte desses atuais recursos não estarão mais em uso. Daqui a 10, 20, 30, 40 ou 50 anos, centenas ou milhares de inventos e outras criações tecnológicas certamente terão se tornado obsoletos. No tocante à vida e ao trabalho, qual o sentido de aprender apenas a operar tecnologias que ficam superadas tão rapidamente?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma característica da Modernidade é confundir o amplo sentido do processo formativo de modo a reduzi-lo à instituição escolar, onde ocorre a chamada escolarização formal. O que significa tomar a parte pelo todo, deslocando o foco da problematização para uma das diversas instâncias educativas que compõem o tecido social e sem a articulação das demais instâncias formativas, fazendo com que a educação como fomação integral do homem se apresente como tarefa impossível de ser realizada.

Rodrigues (2001, p.232) denuncia

A consensual concepção que atribui aos processos escolares atuais os fins e os meios de toda a Educação acentua, que tal concepção articula a visão pragmática e utilitária predominante na ordem política e social do mundo moderno ao papel atribuído à educação escolar de preparar os educandos para o exercício da cidadania. Examina ainda- e recusa – a estreita relação que destina o atributo de cidadão aos indivíduos que se apossam dos conhecimentos e habilidades consideradas necessárias para que se integrem como força eficiente nos setores produtivos. O texto reconhece que o acesso a conhecimentos e habilidades constitui parte do processo de formação humana, mas não deve ser confundido com a totalidade do processo.

Chauí (1990) nos chama a atenção para o fato de que a forma contemporânea da dominação assenta na separação radical, em todas as esferas da vida social, entre os que dirigem e aqueles que executam funções. A dualidade da educação diz respeito à intenção de formar dirigentes e executantes, os que mandam e os que obedecem, senhores e servos.

Entendemos que a verdadeira formação passa pelo caminho da interrogação ética e supõe a busca constante pela areté. À educação cabe desenvolver o indivíduo para o exercício da alteridade, o sair de si e colocar-se no lugar do outro e não para o narcisismo. Formar significa girar o olhar, ampliando-o para abarcar o bem da coletividade, o espírito do público deve ser colocado na frente dos interesses particulares. Entendemos que o retorno aos antigos, por meio da leitura dos clássicos do pensamento, possibilite uma formação mais densa, fugindo da superficialidade, da efemeridade e do consumismo exacerbado pelos produtos des (educadores) da indústria cultural.

A autoridade é um aspecto importante no processo de formação, assim como também o processo de superação da autoridade que ocorre pela construção da autonomia do sujeito, no exercício da sua liberdade, que só é possível por meio do esclarecimento. É imprescindível o conhecimento dos processos de dominação para a possibilidade de resistir a ela. O pensamento é produto da história, do tempo do ócio, dedicado à leitura, ao estudo, ao exercício do pensamento, à formação.

O trabalho do pensamento de reflexão sobre as questões propostas nesse estudo nos leva a afirmar a existência de uma objetividade que diz respeito ao grupo social com o qual convivemos e tudo o que desejamos enquanto subjetividade tem a ver com a internalização das coisas, pela interação com o grupo social. As nossas subjetividades são “privadas”, na perspectiva capitalista, o indivíduo convive com o outro, mas, constrói uma subjetividade privada, como se o individualismo fosse decorrência da forma como se constitui o conhecimento e o trabalho da educação.

Os paradoxos da exploração do homem pelo homem que constitui o sistema capitalista são camufladas ideologicamente nas “tramas” da educação, da cultura e da política. Entendemos que cabe à escola, o trabalho de desenvolver o que Goldmann (1984) denomina como consciência possível, ideia fundamental de seu pensamento. Concebida como busca da autonomia necessária ao exercício da deliberação consciente, a formação leva os sujeitos a desvelarem as ocultações e camuflagens que perpetuam a dominação na nossa sociedade que se utiliza de máscaras para legitimar uma democracia de direito, mas de fato inexistente.

 

REFERÊNCIAS

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Data de recebimento: 05/02/2012 . Data de aceite: 22/05/2012.

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