Resumo: A Inteligência Artificial no âmbito das plataformas de música digital está transformando radicalmente o ecossistema cultural. Os desenvolvimentos tecnológicos e as plataformas de música por streaming, auxiliadas por aprendizagem automática e algoritmos, influenciam tendências culturais, engajamento de ouvintes e criação de música em escala global. Com referências a Marshall McLuhan e seus/suas seguidores/as, este artigo discute os suportes de música nos contextos passado, presente e futuro, e avalia o impacto de atribuir à Inteligência Artificial o papel de curadora cultural.
Palavras-chave: Música digital. Cultura. Curadoria. McLuhan. Playlists. Beatles. Drake. Nielsen.

Fonte: ALCEU (Rio de Janeiro, online), V. 22, Nº 46, p.48-55, jan./abr. 2022. https://doi.org/10.46391/ALCEU.v22.ed46.2022.281. License: CC BY-NC 4.0 (Attribution-NonCommercial 4.0 International).

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IA é o novo DJ (1): Inteligência Artificial como curadora cultural
Rea Beaumont*

 

(1) Tradução de Luiz Baez (doutorando em Comunicação e membro da equipe editorial da Revista ALCEU) e revisão técnica de Adriana Braga (Professora Associada no Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC-Rio).

*Professora adjunta da Faculdade de Música da Universidade de Toronto e membra fundadora da McLuhan Foundation.

 

O consumo de música é um componente intrínseco ao ecossistema cultural. A arte reflete e molda valores sociais em uma escala global. No começo do milênio, o modelo predominante de compartilhamento de música digital baseava-se na compra e no download de arquivos de áudio mp3, que capturavam a forma artística intangível da música em uma renderização quase tangível, visando criar uma forma codificada da experiência sonora impermanente. Os desenvolvimentos tecnológicos transformaram essa prática de compartilhamento de música: o download de arquivos digitais deu lugar ao modelo de assinatura online de streaming. Ouvintes não mais possuem ou armazenam arquivos de música, uma vez que as playlists se encontram online, no armazenamento em nuvem do provedor de serviço. As playlists são um subproduto da experiência cultural transitória; quando as assinaturas de streaming expiram, as playlists do/a usuário/a desaparecem, assim como qualquer evidência da experiência sensorial passada, das escolhas artísticas ou das coleções virtuais de música do/a ouvinte. As plataformas de streaming emprestam artes temporárias a usuários/as sem nenhuma intenção além do prazer momentâneo.

A aceitação do fenômeno da efemeridade no streaming de música digital como um valor cultural fundamental implementou uma mudança importante na prática criativa que impactará a longo prazo a trajetória das narrativas sociais, culturais e históricas. Marshall McLuhan tratou de novas tecnologias na introdução do livro Os meios de comunicação como extensões do homem: “Toda tecnologia nova cria um ambiente que é logo considerado corrupto e degradante. Todavia o novo [meio] transforma o seu predecessor em forma de arte” (McLUHAN, 2007, p. 12). O disco de vinil dos Beatles Abbey Road, de 1969, com sua icônica capa, é radicalmente diferente das imagens em tamanho de selo que acompanham o áudio em streaming. A presença reduzida da capa na música digital estabelece paralelo com a diminuição do produto físico. O compartilhamento digital, em particular o modelo de plataformas de streaming, interrompeu práticas curatoriais tradicionais. Provedores de serviço que hospedam arquivos de áudio no armazenamento em nuvem se sobrepuseram ao papel de colecionador/a dos/as consumidores/as. Se a prática de acumular LPs e CDs físicos refletia valores artísticos e sociais do/a colecionador/a e da própria arte, então assinantes de streaming podem questionar a viabilidade de legar às gerações futuras playlists virtuais construídas com conteúdo que sequer possuem ou armazenam. Com essa tecnologia baseada na experiência, as plataformas de mídias digitais desencadearam o fenômeno do arrendamento de nossa herança musical.

Os serviços de streaming líderes de mercado tornaram-se poderosos influenciadores globais que ditam as tendências atuais e futuras da música e da cultura. Reforçadas pela Inteligência Artificial, essas plataformas gradualmente se transformaram em sistemas sociotecnológicos que codificam expressões artísticas e influenciam padrões de comportamento na comunidade global. Algoritmos reconhecem padrões nas playlists pessoais e geram recomendações a assinantes baseadas em seu gosto estético e nas semelhanças compartilhadas com a playlist de outros/as usuários/as. Uma vez que algoritmos geram faixas recomendadas, como as Descobertas da Semana, o processo de descoberta natural diminui, as escolhas musicais de ouvintes progressivamente se estreitam, e usuários/as renunciam ao controle para aceitar seleções direcionadas pela ferramenta externa. Quando algoritmos exercem influência no processo de tomada de decisão e produzem playlists sob medida para uma comunidade global de ouvintes, a plataforma de streaming transforma o seu papel de provedora no de decisora do gosto musical. Algoritmos que selecionam músicas substituem o papel humano do discotecário; IA é o novo DJ. Ao passo que estações de rádio baseiam a curadoria de músicas principalmente no gênero, as plataformas de streaming ampliaram esse papel à curadoria de cada “estação”, ou playlist pessoal, em sintonia com as preferências de usuários/as. Para garantir o mesmo nível de preferências pessoais em todos os suportes de escuta, a influência algorítmica estende-se aos dispositivos móveis. O celular e o relógio tornaram-se o novo rádio. A música está onipresente nesta era do som surround prático e portátil.

A tecnologia digital modificou o nível de engajamento social com a música não apenas para quem a consome, mas também para quem a produz. Como uma forma de adaptar suas músicas para dispositivos de áudio móveis e serviços de streaming, um número crescente de artistas lança singles em vez de álbuns completos. Em Laws of Media: The New Science, Marshall McLuhan e Eric McLuhan postulam que “sem a interação de artistas, o ser humano apenas se adapta às suas tecnologias e se torna seu servo” (McLUHAN e McLUHAN, 1988, p. 98).

A necessidade de adaptar a forma artística às mídias não é um fenômeno recente. A duração máxima do disco compacto era de 79 minutos de áudio. Um LP (disco de longa duração) analógico de 33 ⅓ rotações por minuto não podia exceder 22 minutos de cada lado. Desenvolvido em 1949 pela RCA Victor, os compactos simples (singles) ou 45s que ganharam popularidade com a emergência do rock’n’roll comportavam um máximo de três minutos de música em cada lado de um disco de sete polegadas a 45 rpm. Em comparação, a duração média de um single digital contemporâneo é de três minutos e três segundos, de acordo com um estudo do Reino Unido (BEMROSE, 2019). Com as faixas single digitais despontando como a mídia privilegiada, avanços contemporâneos na tecnologia de áudio estão efetivamente retornando a uma versão atualizada da modalidade de meados do século XX. Uma vez que artistas adaptam sua visão criativa aos formatos disponíveis, há um impacto visível no conjunto da obra produzida. Por exemplo, os Beatles lançaram 21 álbuns de estúdio, 54 coletâneas e 63 singles. Com a mídia da faixa single digital atualmente privilegiada, o rapper canadense Drake lançou seis álbuns de estúdio, três coletâneas e 139 singles. Em 2021, Drake garantiu o quinto lugar na lista das dez músicas mais ouvidas da revista Billboard durante uma semana, uma estatística apenas alcançada anteriormente pelos Beatles (TRUST, 2021).

Em sintonia com os desenvolvimentos tecnológicos e a ascensão do streaming digital, a ênfase da indústria musical migrou da coleção para a criação. A corrida por conteúdo está gerando uma intensa saturação de mercado, com uma taxa de produção musical que excede o consumo humano. De acordo com o cofundador e presidente do Spotify, Daniel Ek (2019), 40 mil faixas foram enviadas à plataforma diariamente no primeiro trimestre de 2019. Em 2021, com sua comunidade de 7 milhões de criadores/as, o Spotify experimentou um aumento de 50% do volume de produção, com aproximadamente 60 mil faixas adicionadas à plataforma diariamente (INGHAM, 2021). Como cada faixa musical tem em média três minutos e três segundos de duração, aproximadamente 127 dias de música são adicionados ao Spotify a cada 24 horas. Com base nessas estatísticas, aproximadamente 46355 dias de música são adicionados anualmente. Se esse ritmo de crescimento se mantiver nos próximos anos, será preciso um período de quase duas vidas para ouvir um ano de música adicionada ao Spotify. Ek (2019) espera ver 50 milhões de criadores/as em sua plataforma em 2025, indicando que “não é uma previsão ou um objetivo: é realmente um desafio e uma grande oportunidade”.

A taxa de produção prevista para o futuro coloca em dúvida sua viabilidade, já tendo criado um dilema curatorial. Repositórios nacionais são desafiados a armazenar digitalmente arquivos de música visando a publicação e a distribuição em larga escala. Bibliotecas continuam a explorar sua adaptabilidade para lidar com a enorme quantidade de conteúdo digital. Em seu livro The Future of the Library: From Electric Media to Digital Media, em coautoria com Marshall McLuhan, o físico e ecologista das mídias Robert K. Logan (2016, p. 159) comenta: “É essencial aprender a decifrar os milhões de mensagens que nos bombardeiam diariamente”. O cenário digital dinâmico demanda um sistema digital dinâmico para organizar, arquivar e recuperar conteúdo. Quando arquivos de áudio são criados e distribuídos a uma velocidade que excede em muito o consumo humano, a inteligência artificial ganha um papel cada vez mais determinante na organização dos recipientes digitais.

Comprada em 2016 pela Nielsen, companhia que é dona da Billboard, a Gracenote Global Music Data “é a mais completa coleção de metadados objetivos e descritivos para as músicas mais populares em todo o mundo” (GLOBAL, 2021). Originalmente concebida como um software de código aberto, a Gracenote classifica músicas de acordo com descrições ricas de “gênero, origem, época, tipo de artista, bem como atmosfera sonora (sonic mood), estilo sonoro e tempo rítmico” (GLOBAL, 2021). A companhia emprega a tecnologia de aprendizagem automática para identificar características que classifiquem a atmosfera da música segundo o reconhecimento de padrões.

A Gracenote começou o seu trabalho com o que chama de classificação por atmosfera sonora (sonic mood) há cerca de dez anos. Ao longo do tempo, o trabalho evoluiu, na medida em que algoritmos mais tradicionais foram substituídos por redes neurais de ponta. E, silenciosamente, ela se tornou um dos melhores exemplos do recurso crescente à inteligência artificial na indústria musical (ROETTGERS, 2017).

Um perfil das emoções humanas é traçado por tecnologias de aprendizagem automática. A combinação de metadados, classificação das emoções e controle do engajamento dos/as usuários/as dotou a inteligência artificial da habilidade de aprender, prever e moldar resultados curatoriais. A mineração de dados da Nielsen conduzida por meio dos dados descritivos da Gracenote é “o molho secreto por trás da playlist mais popular” (GLOBAL, 2021), uma vez que a radiodifusão de uma música, a sua popularidade em playlists e as impressões do público são importantes critérios para a lista da Billboard. É um caso da mídia moldando nossa relação com a arte. Como John M. Culkin (1967) observa, “nós moldamos nossas ferramentas, e nossas ferramentas nos moldam”.

A sociedade, até recentemente, fazia um esforço consciente para preservar a música em sua forma física e/ou em tradições sonoras baseadas na prática, a fim de compartilhar a forma artística com gerações futuras. Em um olhar histórico retrospectivo, a ascensão e a queda de tecnologias construiu e desconstruiu as principais mídias musicais, incluindo o vinil, os cassetes, os discos compactos e a fita DAT. Considerados seus antecessores, o fenômeno tecnológico do streaming digital tem uma longevidade intrinsecamente precária. O que acontecerá com a coleção global de música quando os modelos de streaming na nuvem se tornarem obsoletos? As plataformas digitais de streaming talvez possam consolidar-se como modelo “permanente” ou dar lugar à próxima inovação.

Uma sociedade se diferencia e, em última instância, se define por suas manifestações culturais, mas a inteligência artificial continua a afetar práticas culturais em uma escala global. A criação de música é uma experiência humana. Os/as criadores/as musicais no âmbito digital estão trabalhando simultaneamente em parceria e, por vezes, em contraste com softwares de aprendizagem automática que conseguem identificar e imitar emoções humanas. A propensão social a abdicar de um nível significativo de controle e atribuir à IA a curadoria da criação da narrativa cultural global merece uma consideração de seus efeitos a longo prazo, incluindo uma reflexão sobre benefícios e perigos possíveis.

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