Resumo: O artigo identifica as instâncias subjetivas do que leva o ser humano à busca por experiências de cunho espiritual e religioso. Situa a contemporânea busca religiosa e a crise de sentido que afeta a humanidade como uma busca de realização espiritual e do ser-si-próprio, diante de um mundo onde a potencialidade espiritual se encontra cada vez mais devastada. Viktor Frankl, Karl Jaspers, Paul Tillich, todos originários das contribuições da fenomenologia, são os principais autores a sustentar a reflexão em torno do tema. Frankl sustenta a ideia de um inconsciente espiritual, de uma transcendência da consciência, e Jaspers e Tillich se ocupam com a análise da “situação espiritual do nosso tempo”, uma era cujos reflexos colhemos sobremodo no terceiro milênio. Todos tratam de decifrar a intrínseca relação da não realização espiritual, da busca de um sentido do ser humano para a sua existência com a crise mais generalizada no mundo ocidental. A conclusão do texto segue na perspectiva de que a busca espiritual é inerente ao ser humano, pois se trata da realização do ser humano como ser-si-próprio no mundo. A impossibilidade de realização desta dimensão leva a uma profunda frustração existencial cujas consequências são patentes no modo de vida da humanidade na contemporaneidade.
Palavras-chave: Espiritual. Busca de vida. Psicologia da religião. Viktor Frankl. Karl Jaspers. Paul Tillich.
Fonte: Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 1605-1636, out./dez. 2013 – ISSN 2175-5841 1605. Temática Livre – Artigo original DOI – 10.5752/P.2175-5841.2013v11n32p1605. Artigo recebido em 08 de outubro de 2013 e aprovado em 06 de dezembro de 2013.
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A busca pelo espiritual e a busca de sentido no mundo contemporâneo1
Anete Roese*
1 A pesquisa recebeu apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa da PUC Minas, edital FIP/PUC Minas 2013, a quem a autora agradece.
*Doutora em Teologia. Professora Adjunta da PUC Minas no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião. País de origem: Brasil. E-mail: anete.roese@gmail.com.
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Introdução
Entre tantas outras questões emergentes da vida humana no mundo contemporâneo, o modo como o ser humano conduz a sua vida espiritual implica em uma das mais complexas análises. A compreensão da situação espiritual da humanidade no século XX e XXI, especialmente no ocidente, é um desafio para as Ciências da Religião, para a Teologia, a Psicologia e demais áreas das Ciências humanas. A vigorosa busca por religião e experiências espirituais e, simultaneamente, a frustração relativa às ofertas convencionais e as inovações neste campo do religioso e do espiritual – no que diz respeito à criatividade com que a vida espiritual e religiosa tem sido reinventada compõem um contexto complexo que envolve crise, frustração, criatividade e busca de sentido em meio à profusão de sentidos ofertados.
A reflexão que este texto se propõe a fazer não equipara exatamente o religioso ao espiritual. Ainda que, nem sempre as duas esferas possam ser separadas. Com base em autores como Viktor Frankl, Karl Jaspers e Paul Tillich, todos comprometidos com a fenomenologia, nos ocuparemos de situar o espiritual para além do religioso, mas compreendendo este como uma expressão daquele. Segundo a fenomenologia, o ser humano é um ser biopsicoespiritual. (BELLO, 2006). À dimensão física competem os atos corpóreos, – como os instintos; à dimensão psíquica competem os atos psíquicos – os impulsos, reações, emoções. A dimensão espiritual, por sua vez, é uma característica essencialmente humana, pois é ela que diferencia, sobremaneira, os seres humanos de outros seres vivos. O espiritual, aqui, não se reduz ao religioso, tampouco a uma ideia romântica de espiritualidade, onde um indivíduo busca uma realização pessoal voltando-se para si mesmo. Como ser espiritual o ser humano é um ser de transcendência, um ser que tem necessidade de ir além de si, de transcender o seu mundo próprio e buscar o outro (FRANKL, 2001a; HUSSERL, 2008).
Segundo Bello (2006), o ser humano se diferencia, justamente, pelos atos espirituais, pela sua capacidade espiritual – que se compõe pela capacidade de reflexão, pensamento, compreensão, decisão, juízo, responsabilidade, etc.. Ou seja, a dimensão espiritual é a instância pela qual o ser humano é capacitado de atos de controle, controle da dimensão física e psíquica e de seus atos correlatos, e controle que se dá pela instância capaz de pensamento, ponderação, valoração. A convergência entre as três dimensões – física, psíquica e espiritual se dá na consciência. Neste sentido, é importante verificar o avanço que se dá na compreensão do que seja o espiritual. É esta a capacidade que torna o ser humano um ser singular. Boff (2006) explica que o espiritual não se refere a um sentimento religioso. Se trata da dimensão que constitui o ser humano e é uma potencialidade e capacidade de transcendência – é a capacidade de ir além, de se implicar no mundo, permite ao ser humano ver além das coisas e compreender o sentido mais profundo das coisas. É também a sua capacidade racional, ética e valorativa – que é única da criatura humana diante das outras criaturas. Espiritualidade, neste contexto de compreensão, é um “modo-de-ser” onde todas estas potencialidades profundas e transcendentes estão presentes (BOFF, 2012).
Para a realização plena da sua existência o ser humano necessita e almeja a realização da sua totalidade física, psíquica e espiritual. Quando uma das dimensões não pode se realizar efetivamente as outras dimensões também são afetadas e a sua existência fica comprometida. Vale dizer que a não realização espiritual comprometerá justamente aquilo que define, diferencia, essencialmente o ser do ser humano. É neste sentido que o texto propõe a reflexão em torno da questão espiritual no mundo contemporâneo, considerando que o que efetivamente está em jogo e em crise é uma dimensão mais profunda e para além da crise da experiência religiosa ou da religião em si, mas a “substância” espiritual, ou seja, algo que constitui o ser humano em sua essência está em crise.
A potencialidade espiritual do ser humano, como dito acima, se caracteriza também pela capacidade de transcendência, ou seja, de ir além de si. É por meio desta capacidade que o ser humano se vincula ao outro, ao mundo. O ser humano é um ser-no-mundo, portanto, está intimamente vinculado com o lugar onde vive, e é neste mundo que ele constrói a sua identidade. O ser humano existe sendo, se realizando, neste mundo de diferentes maneiras. “’Mundo’ é o conjunto de relações significativas dentro do qual a pessoa existe” (FORGHIERI, 2009, p. 29). Este mundo se apresenta de diferentes formas e o ser humano mesmo tem diferentes maneiras de existir neste mundo. Podemos falar, pois, para além do mundo próprio, de um mundo humano e de um mundo circundante. As três maneiras são interdependentes e, no entanto, cada qual tem as suas características.
Segundo Forghieri (2009), o mundo circundante é o ambiente como um todo, isto a instância exterior, com tudo o que nela há e acontece – o clima, as estações, a natureza com a sua ordem, os animais, o ser humano e sua dimensão interna, seu corpo e suas necessidades. O mundo circundante apresenta condicionamentos e determinismos com os quais o ser humano precisa estabelecer uma relação dialética de adaptação e superação.
O mundo humano se caracteriza pela co-presença do ser humano com seu semelhante. O ser humano é indivíduo e é também ser-com o outro neste mundo, se assemelha e ao mesmo tempo se diferencia desse outro. A identidade do ser humano é construída através da relação, da partilha, do encontro com outro. É só com o outro que o ser humano vem a ser verdadeiramente humano. É na relação com outro que cada ser pode atualizar as suas potencialidades humanas como a liberdade, a responsabilidade e o amor.
Já o mundo próprio consiste na relação do indivíduo consigo mesmo, seu autoconhecimento, a consciência de si mesmo e na significação que as experiências terão para ele, bem como o conhecimento que terá de si e do mundo. O pensamento tem uma função central na dimensão do conhecimento – pois inclui o que é muito próprio do ser humano – a reflexão, a intuição, a memória, a imaginação, etc. O ser-si-mesmo se constrói, então, a partir da relação com o mundo circundante e o mundo humano fazendo as apropriações pessoais desta relação dinâmica, na qual o ser vai se autotranscendendo à medida que toma consciência de si e da sua relação com a realidade – os outros mundos. Segundo Forghieri,
a consciência de si e o autoconhecimento implicam a autotranscendência; esta é a capacidade do ser humano transcender a situação imediata, ou, em outras palavras, a capacidade de ultrapassar o momento concretamente presente, aqui e agora, o espaço e o tempo objetivos. Pela autotranscendência a pessoa traz o passado e o futuro para o instante atual de sua existência e se reconhece como sujeito responsável por suas decisões e atos. (FORGHIERI, 2009, p. 32)
A dimensão da temporalidade na vida de um indivíduo, por sua vez, se estabelece, sobretudo, de modo subjetivo, não de modo cronológico ou biológico, de forma simples e linear como a concebemos objetivamente. O conflito e o sofrimento, por exemplo, como todas as outras esferas da experiência humana, compõem-se de uma temporalidade complexa que vive, a um só tempo, vários tempos, ou seja, o passado pode em certa circunstância ter uma dimensão de importância muito maior no tempo presente que o tempo presente em si. Ou, a fantasia pode antecipar imaginariamente experiências futuras, pode negar o presente, a realidade do momento, numa fuga para o futuro (MENEGAZZO, 1994). Nesse sentido, o tempo no qual a humanidade se encontra, a contemporaneidade, também é de difícil definição cronológica, pois se estabelece mais pela vivência de algo que tem marcas no passado, acontece no presente e imaginariamente contempla o futuro. Nessa direção entendemos os autores escolhidos para compormos um quadro de compreensão da situação que se vive no aqui-e-agora da humanidade, ainda que o lugar concreto que ocuparam tenha nos antecipado em poucas ou muitas décadas. De todo modo, todos eles são autores cuja capacidade de interpretação da realidade e da situação humana faz deles grandes visionários, pois tiveram a competência de antecipar as consequências sobre um modo de vida entabulado pela humanidade em um determinado tempo da história.
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1 O ser humano, o espiritual e a busca pelo espiritual
Viktor Frankl postula a existência de um inconsciente espiritual, desenvolve a noção da transcendência da consciência e de religiosidade inconsciente. Trata-se de concepções que nos ajudam a compreender as razões profundas da busca religiosa e de vivências espirituais no mundo contemporâneo.
1.1 O inconsciente espiritual, a transcendência da consciência e a religiosidade inconsciente
Postular a existência espiritual do ser humano significa confrontar a limitação da concepção da facticidade psicofísica. É nesta direção que Viktor Frankl (2001a; 2001b) aporta a noção de inconsciente espiritual, transcendência da consciência e de religiosidade inconsciente.
O inconsciente, para Frankl (2001b), está além do inconsciente impulsivo – ele tem uma dimensão espiritual, sendo composto de dois elementos: o inconsciente espiritual e o inconsciente instintivo. Para o autor, o inconsciente precisa ser reabilitado, incluindo a ideia do espiritual, pois o inconsciente é mais que um reservatório de instintos reprimidos, como propunha Freud, mas é uma força criadora. O ser humano não é um ser impulsionado, mas é um ser que decide, é um ser responsável, existencial. O limite do consciente para o inconsciente não é estanque, é fluido, portanto, o ser humano pode ser ele mesmo – mesmo nos estados inconscientes.
O ser humano é um ser integrado, um ser biopsicoespiritual, uma totalidade centrada, é um centro espiritual existencial. Para Frankl, se trata de um centro de atos espirituais, ou seja, “um centro espiritual em torno do qual se agrupa o psicofísico” (FRANKL, 2001b, p. 20). A dimensão da decisão, ou seja, a dimensão espiritual também funciona inconscientemente. O ser que decide é espiritual e não impulsionado/instintual. Discernir e decidir são, pois, capacidades da instância espiritual. Para Frankl, a existência humana é essencialmente espiritual. É nisto que consiste a humanidade essencialmente, o que a diferencia de outras espécies.
Segundo Frankl a diferenciação absoluta entre consciente e inconsciente não constitui um critério para compreensão da existência humana. Sobretudo porque o ser humano não é essencialmente impulsionado, ao contrário “trata-se muito mais, de acordo com Jaspers, de um ‘ser que decide’, ou, no sentido de Heidegger e também de Binswanger, de um ‘estar aqui’. No sentido analítico-existencial que nós lhe damos, constitui um ‘ser-responsável’, portanto, um ser existencial”. (FRANKL, 2001b, p. 19).
Frankl (2001b) desenvolve, pois, uma compreensão do inconsciente que difere substancialmente daquela de Freud. Segundo Frankl, o inconsciente constitui uma força criativa, e, neste sentido, o ser humano é profundamente ele mesmo também em estados inconscientes. Nestes estados o ser humano é original, criativo, justamente não condicionado. Esta compreensão contempla também a noção de que o ser humano é de fato ele próprio quando é responsável, quando decide, ou seja, quando não é impulsionado. Dito de outra forma, e aqui reside uma compreensão fundamental, o ser humano quando deixa de ter capacidade de decisão e de responsabilidade deixa de ser ele próprio.
Frankl divide a estrutura humana em dois planos fundamentais: existência e facticidade. A esta última associa os elementos fisiológicos e psicológicos, enquanto a existência “é algo essencialmente espiritual” (FRANKL, 2001b, p. 20). Esta diferenciação é importante para o entendimento do lugar que o ser humano ocupa no mundo e como ocupa ou deveria ocupar este lugar. Compreender a existência como espiritual significa que o ser humano tem uma capacidade de transcendência, de ir para além de si mesmo, de se dirigir ao outro/Outro, tem capacidade de decisão, responsabilidade e de liberdade. Como o ser humano realiza a sua instância ou potencialidade espiritual hoje é a questão central para pensarmos a crise da relação do ser humano com o mundo circundante – o meio ambiente, o mundo humano – a sua relação com o outro – deteriorada pela violência, e o mundo próprio – cujos sintomas de mal estar se evidenciam no agravamento das doenças físicas e psíquicas na atualidade, e na incapacidade de realização da sua capacidade de responsabilidade com o mundo, o outro e consigo mesmo. Esta frustração da impossibilidade de realização das suas potencialidades espirituais é certamente o fundamento de toda a crise e afeta a sua relação com o mundo circundante, o mundo humano e o mundo próprio de modo devastador.
A crítica de Frankl à psicologia profunda, à psicanálise, é que esta investigou o ser humano “até as profundezas inconscientes de seus instintos, mas investigou muito pouco as profundezas do seu espírito, a pessoa humana na profundeza inconsciente.” (FRANKL, 2001b, p. 22). Frankl constituirá a ideia da “pessoa profunda” que remete à profundidade espiritual-existencial da pessoa e à profundeza inconsciente desta pessoa. Dada a profundeza do inconsciente, este é irreflexível, ou seja, a pessoa profunda também não pode ser plenamente alcançada, em sua essência, pela reflexão. “Neste sentido, a existência espiritual, ou seja, o próprio eu, o eu ’em si mesmo’, é irreflexível e, assim, somente executável, ‘existente’” (FRANKL, 2001b, p. 23).
Para além da dimensão espiritual do inconsciente, Frankl (2001b) atribui à consciência uma transcendentalidade essencial, que supera a facticidade psicológica. A consciência “transcende a minha condição humana” (FRANKL, 2001b, p. 41), ela é um fenômeno transcendente. Segundo Frankl (2001b), assim como o umbigo remete a um “’resto’” que transcende o ser humano e remete a algo que o antecede e o ultrapassa, assim a consciência remete a uma origem transcendente – há algo extra-humano que a caracteriza.
O fato psicológico da consciência é, portanto, apenas o aspecto imanente de um todo transcendente, a parte que se projeta do plano da imanência psicológica. A consciência é apenas o lado imanente de um todo transcendente, a parte que se projeta do plano da imanência psicológica, transcendendo este plano. (FRANKL, 2001b, p. 42).
A responsabilidade nos ajuda a compreender a noção de transcendentalidade da consciência. A existencialidade em si remete a liberdade do ser humano, a responsabilidade, por sua vez, só pode ser compreendida se tomamos em conta a transcendentalidade da consciência. Ora, a responsabilidade implica tomar em conta o outro. Algo que transcende o ser em si está, pois em jogo.
A antiga noção “voz da consciência”, que devo ter domínio da minha vontade e servo da minha consciência indica que a liberdade do ser humano deve ser comandada por uma consciência que aponta para a característica própria de responsabilidade. Se “devo ser ‘servo da minha consciência’, e para sê-lo, esta deve então ser algo diferente, algo mais que eu, tem que ser algo superior ao homem, o qual apenas ouve a ‘voz da consciência’; deve ser algo extra-humano” (FRANKL, 2001b, p. 40). O consciente tem características transcendentais. A consciência vai além da censura, mas dá sentido e aponta valores. A voz da consciência é a voz da transcendência. É a consciência que indica o sentido, ela move a existência, e aponta para a responsabilidade – cuja origem está no consciente.
A consciência se origina no inconsciente (num fundo inconsciente), bem como se estende ao uma profundidade inconsciente. As grandes decisões são inconscientes. Por isso a consciência é irracional também, alógica, pré-lógica. “Aquilo que a consciência moral nos revela constitui algo ainda a se tornar real, que terá que ser realizado” (FRANKL, 2001b, p. 27). A pergunta que segue é como pode algo se realizar se não antes se apresenta espiritualmente. Para Frankl (2001b), esta antecipação espiritual se dá pela intuição, por um ato de visão. Portanto, a consciência moral se revela intuitiva. Neste caso, para poder antecipar o que tem a realizar, a consciência ética é irracional e só posteriormente racionalizável. É, pois, “tarefa da consciência revelar ao ser humano ‘aquele único necessário’, o que é sempre algo exclusivo” (FRANKL, 2001b, p. 27). O ético, o erótico, a consciência moral e o amor têm sua origem numa profundidade intuitiva – o inconsciente espiritual. “No inconsciente espiritual, existe junto ao inconsciente ético, a consciência ética, o que poderíamos chamar de inconsciente estético, ou seja, a consciência artística”. (FRANKL, 2001b, p. 29).
Dentro da espiritualidade inconsciente Frankl descobriu uma religiosidade inconsciente – um relacionamento inconsciente com Deus, uma relação com o transcendente – que é imanente, que muitas vezes fica latente. Se antes o eu se revelou também como inconsciente, ou, o inconsciente revelou-se também como espiritual, agora o inconsciente espiritual se revela como igualmente transcendente. Se esta fé inconsciente está incluída no conceito de seu inconsciente transcendente significa que sempre houve uma tendência inconsciente para Deus. Significa que Deus às vezes permanece inconsciente para nós. Nossa relação com Deus pode ser inconsciente reprimida e oculta para nós mesmos. Mas o inconsciente não é divino, não é onisciente, Deus não está dentro de nós.
Para Frankl a religiosidade inconsciente e todo inconsciente espiritual constituem um ser inconsciente que decide, mas não um ser impelido a partir do inconsciente. Para o autor, o inconsciente espiritual e a religiosidade inconsciente, ou seja, o inconsciente transcendental não são um inconsciente determinante, mas existente. Segundo Frankl, a religiosidade inconsciente provém do centro do ser, da própria pessoa. Não é inata, não é biológica. Para Freud, “a religião é a neurose obsessiva comum ao gênero humano” (FRANKL, 2001b, p. 53). Para Frankl, a “neurose obsessiva seria a religiosidade psiquicamente doente” (FRANKL, 2001b, p. 53). Quando a fé se distorce, desfigura, quando o sentimento religioso se torna vítima de uma repressão por parte da razão despótica, de uma inteligência técnica a deficiência da transcendência se vinga através de uma existência neurótica.
O fato de considerar que grandes decisões são tomadas inconscientemente, e de caracterizar o inconsciente como uma capacidade criativa, o de considerar a transcendentalidade da consciência, de que o ser humano não deixa de ser ele mesmo nos estados inconscientes, e ainda, de que a característica essencial da existência humana é a capacidade espiritual – a qual se expressa nos atos de reflexão, controle, decisão, juízo e responsabilidade, entre outras, nos permite compreender, a partir de Frankl, o que está em questão quando a humanidade se encontra em uma era de crise como na contemporaneidade. Trata-se de que o ser humano se encontra cerceado em sua potencialidade de ser na sua dimensão mais ampla – na sua capacidade de transcendência, na sua profundidade inconsciente – que lhe requer que exerça a sua condição humana em sua totalidade, o que inclui sobremodo a espiritualidade no seu sentido mais amplo – que envolve a liberdade, a responsabilidade, o seu ser-si-próprio autêntico.
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2 O sentido da crise espiritual
As crises são fundamentais para o desenvolvimento existencial, elas impulsionam o indivíduo forçando-o a tomar decisões, a tomar medidas, a encaminhar mudanças, a ser responsável. A crise é um estado de purificação da existência a partir da criação de outros valores, de novas escolhas e decisões, tanto em dimensão individual como coletiva. O que nela assusta é a maneira brusca com que aparece, o tempo que exige e o desequilíbrio que causa, gerando perplexidade, inquietude, mal-estar, dúvida e angústia. O que está em jogo na crise é a avaliação do sentido atribuído à vida até então e a necessidade de outra dinâmica existencial na qual uma autenticidade maior é requerida (RUDIO, 1998). O que caracteriza a crise humana no mundo contemporâneo é seu caráter generalizado. Não se trata de um mal individualizado, mas de um mal-estar generalizado, cujos sintomas afetam um grande contingente de pessoas e, entre outros, podem ser verificados na desesperada busca pelo restabelecimento, ou seja busca por religião e experiências de cunho espiritual.
Para Frankl, o que caracteriza esta época é um grande sentimento de vacuidade e insignificação. O autor se refere a “um processo crescente de adoecimento espiritual da sociedade” (2003, p.10), cujos sintomas, são a adicção – que se evidencia no uso de drogas lícitas e ilícitas por grande parte da população; a agressão – que se evidencia na violência generalizada, seja dentro das casas – haja vista os elevados números da violência doméstica, a violência sexual contra crianças pelos seus próprios parentes, homicídios, suicídios, etc.; a depressão – que se mostra não apenas como uma doença a mais, mas como um sofrimento de cunho espiritual, que denuncia a insatisfação de um grande contingente de pessoas com o modo de vida em uma determinada sociedade; a banalização da sexualidade – que se evidencia na super exposição do corpo e na midiatização dos conteúdos relacionados à vida sexual, além dos problemas relativos à busca pela potência e pela ausência de prazer nas relações sexuais que agora se pautam na performance mais do que na relação afetiva entre pessoas.
Para Morin (2011) duas barbáries estão aliadas com força no momento atual, a velha barbárie – cheia de ódio, destruição, morte, com as mais diversas motivações no campo das nações, religiões, étnicas ou civis, e a barbárie tecnicista – do cálculo que não toma em conta a dimensão humana do ser humano, com sua história, seu sofrimento, sua vida, seus sentimentos. “Caminhamos em direção à catástrofe”. (MORIN, 2011, p. 12). Para que tal não aconteça, segundo Morin (2011) é necessário uma profunda reforma e se trata de uma reforma das pessoas, e mais especificamente de uma reforma dos espíritos.
As manifestações às quais se refere Frankl e Morin podem ser verificadas não apenas individualmente e localmente, mas são sintomas manifestos na sociedade em geral, no mundo ocidental contemporâneo – contemporâneo de Frankl e do nosso tempo, e de Morin, sendo que podemos identificar estes sintomas significativamente agravados e aprofundados nos nossos dias. Frankl (1991) também denominou esta situação de neurose coletiva, de patologia do nosso tempo. Trata-se, segundo Frankl, de uma neurose noogênica, porque está relacionada com a falta de sentido e a incapacidade do ser humano de, neste tempo, realizar seu senso de responsabilidade.
Para Frankl, a existência humana foi “vitimada pela neurose” e está “deteriorada”, “decadente” (FRANKL, 2001b, p. 16). O noológico está além do psicofísico, e se trata da dimensão valorativa, intelectual, reflexiva e artística. Estas neuroses surgem de problemas existenciais, principalmente da frustração da vontade de sentido. (FRANKL, 2001a). A análise existencial responderá a esta situação a partir da compreensão de que a existência está neurotizada e buscará conscientizar o ser humano do “seu ser-responsável” (FRANKL, 1992, p. 16). A responsabilidade compõe o âmbito espiritual do ser humano, portanto, trata-se de que algo espiritual a ser conscientizado.
A mais humana de todas as necessidades humanas é a necessidade de sentido, a vontade de sentido, e é esta vontade de sentido que hoje está frustrada no ser humano. Segundo o autor, o ser humano moderno está tomado por uma sensação de falta de sentido, quem vem acompanhada de uma sensação de vazio interior, também denominado por Frankl (2003) de vazio existencial, que se manifesta por meio de tédio e indiferença. O tédio se revela na perda de interesse pelo mundo. A indiferença se manifesta na falta de iniciativa para melhorar ou modificar algo no mundo, e a participação ativa, criadora da vida já não parece estar ao alcance da existência no cotidiano concreto aonde tudo vem absolutamente determinado.
Viver de forma criadora a vida em suas diversas expressões é uma realização da auto-afirmação espiritual. Trata-se de viver de forma espontânea a vida cultural como um todo. Para Tillich, “ser espiritualmente criador” é participar de forma original da vida mudando aquilo de que se participa. Aquele ser que “vive criadoramente em significações, se afirma como participante nessas significações” (TILLICH, 1991, p.36). O ser
afirma-se quando recebendo e transformando a realidade de modo criador. Ama-se a si próprio ao participar da vida espiritual e ao amar seu conteúdo. Ele o ama porque é sua própria realização e porque ele se realiza através dele. O cientista ama ambos, a verdade que ele descobre e a si próprio na medida em que a descobre. Ele é possuído pelo conteúdo de sua descoberta. É o que se chama de „auto-afirmação espiritual‟. (TILLICH, 1991, p. 36)
À medida que o ser não vive de forma criadora, espontânea e autêntica a sua vida espiritual, se não participa de forma ativa e transformadora da vida a ameaça de não-ser certamente o atingirá de modo crescente. De modo semelhante ao que afirmamos acima, desde Frankl, sobre o vazio e a sensação de falta de sentido, também para Tillich (1991) o não-ser afetará o indivíduo em sua auto-afirmação espiritual de dois modos – pela vacuidade e pela insignificação. A insignificação concerne à ameaça absoluta de não-ser à auto-afirmação espiritual e a vacuidade aparece como ameaça relativa. Na base da insignificação está a vacuidade. O não-ser ameaça o ser em sua totalidade, tanto em sua auto-afirmação ôntica, quanto espiritual. “A ansiedade da vacuidade é despertada pela ameaça do não-ser ao conteúdo especial da vida espiritual” (TILLICH, 1991, p. 37). Ou seja, o não-ser espiritual será manifestado por meio da ansiedade e da insignificação. Uma certeza se rompe por fatores externos, “somos cortados da participação criadora” em algum espaço da vida cultural. E “o eros criador” se transforma em “indiferença e aversão”. Nesse caso, o indivíduo pode fazer muitas tentativas, mas nada o satisfaz, parece que nada mais pode oferecer algum conteúdo. Também a tradição perde seu poder de oferecer conteúdo.
O caminho de volta em busca de uma totalidade é árduo. Em meio ao bombardeio de ofertas de sentido que vem de múltiplas instâncias, seja da propagação de ofertas religiosas, da mídia e seus produtos – entre os quais a venda de suposta segurança – se você comprar um jazigo, pagar um seguro de vida, adquirir bens materiais, bem como a tentativa de organizar a existência pautada nos moldes da técnica, o ser humano precisa encontrar meios de sobreviver física, psíquica e espiritualmente. Diante deste contexto, não raro, nada mais que
ansiosamente nos voltamos para longe de todo conteúdo concreto e procuramos um significado básico, só para descobrir que foi precisamente a perda de um centro espiritual que retirou o significado do conteúdo especial da vida espiritual. Mas um centro espiritual não pode ser produzido intencionalmente, e a tentativa de produzi-lo só produz ansiedade mais espessa. A ansiedade da vacuidade conduz-nos ao abismo da insignificação. (TILLICH, 1991, p. 37).
Diante do desespero e da perda de significação a dúvida pode se instalar como desespero existencial. O que ameaça a vida espiritual não é a dúvida em si, mas a dúvida total. “Se a certeza de não haver engolfou a certeza de haver, a dúvida cessou de ser indagação metodológica e tornou-se desespero existencial” (TILLICH, 1991, p. 38). A salvação da vida espiritual consiste, então, na aproximação e manutenção de valores, tradições, ideias, sentimentos que não estejam tomadas pelo novo modo de existência onde o ser estará ameaçado pelo não-ser. No percurso da reflexão de Tillich (1991) se destaca que diante da permanência da dúvida, há que se aceitarem com coragem os fatos sem, contudo, abandonar as convicções. O que assistimos na cultura ocidental diante do confronto da ciência com a religião na modernidade é justamente o abandono das convicções antigas, das tradições. Por outro lado, diante da não realização das promessas da ciência positivista que se afirmou como a única e nova verdade e que constantemente desmoralizou os conteúdos religiosos como fantasiosos e alienantes, gerando uma dúvida radical, a humanidade se vê em uma crise de valores, de sentido e de rumo.
A dúvida profunda levou o ser humano à separação e ao distanciamento do mundo, à “falta de participação universal, no isolamento do seu eu individual” (TILLICH, 1991, p. 38). Nesse caso, segundo Fromm, o ser humano “voa da liberdade de perguntar e responder por si mesmo, para uma situação na qual não podem ser formuladas questões ulteriores e as respostas às questões prévias são impostas a ele autoritariamente”. Então, “a fim de evitar o risco de perguntar e duvidar, ele renuncia ao risco de perguntar e duvida”. Assim, “ele renuncia a si próprio tentando salvar sua vida espiritual. Ele ‘foge de sua liberdade’ tentando fugir à ansiedade da insignificação” (FROMM, 1968). Desse modo, “ele não está mais sozinho, nem na dúvida existencial, nem no desespero. Ele ‘participa’, e afirma pela participação, o conteúdo de sua vida espiritual. A significação está salva, mas o eu está sacrificado” (TILLICH, 1991, p. 38-39). A dúvida foi sacrificada, a liberdade do eu também. E a certeza reconquistada fica marcada por uma ‘auto-agressividade fanática’. O fanatismo é uma ansiedade supostamente dominada, uma autorendição espiritual.
Não é apenas a dúvida pessoal que faz esvaziar um sistema de valores e ideias. Em muitos casos, este sistema de valores não é mais compreendido por não expressar mais a interpretação da situação humana dentro do tempo em que a humanidade exige respostas às questões existenciais. De tempos em tempos novas criações referentes ao conteúdo espiritual são necessárias, caso contrário, o conteúdo espiritual se esvazia de sentido, e deixa o ser humano sem as respostas básicas necessárias, levando-o a uma ansiedade de significação. Se “a auto-afirmação ôntica é enfraquecida pelo não-ser, a indiferença espiritual e vacuidade podem ser a consequência, produzindo um círculo de negatividade ôntica e espiritual” (TILLICH, 1991, p. 39). Ser é a afirmação da responsabilidade, é o compromisso com a realidade e a fidelidade consigo mesmo; enquanto não-ser é a irresponsabilidade, a não-realização, a frustração, a morte, negação de si e infidelidade consigo mesmo (RUDIO, 1998).
O ser humano só é humano “por compreender e moldar a realidade, seu mundo é ele, de acordo com significações e valores. Seu ser é espiritual, mesmo nas expressões mais primitivas do mais primitivo ser humano” (TILLICH, 1991, p. 39). Por essa razão, quando seu ser espiritual é ameaçado, todo seu ser é ameaçado. “A expressão mais reveladora deste fato é o desejo de antes atirar fora a nossa própria existência ôntica do que suportar o desespero da vacuidade e da insignificação. O instinto da morte não é um fenômeno ôntico porém espiritual” (TILLICH, 1991, p. 39). Um dos sintomas do adoecimento espiritual do nosso tempo, como afirmado acima, segundo Frankl (2003), é a agressão. Ela se expressa na violência contra o outro e contra si mesmo – cujas expressões cada vez mais evidentes na atualidade são, além dos homicídios, os crescentes índices de suicídios.
Toda esta situação da humanidade na contemporaneidade nos leva a tomar em conta o que Jaspers já percebeu e afirmou anteriormente. Para o autor se trata de que algo profundamente humano está em jogo e se exaure diante desse modo como vem se organizando o modo de existir humano. Jaspers já se refere à “exaustão” da “substância” (JASPERS, 1968, p. 311), daquilo que caracteriza o ser humano essencialmente. A exaustão pode ser verificada no modo de ser do ser humano, que “na sua atividade (sic) se dissipa, como dispersa a sua vida de relação” (JASPERS, 1968, p. 312). No modo como, exausto e indiferente realiza os seus compromissos no mundo do trabalho, no modo como faz política sem ideologia, como cumpre com ar de obrigação seu momento de lazer e como nesses momentos se diverte com falsa alegria, pois é empurrado a consumir divertimento. Tudo isso parece ser “prova de que tal substância está prestes a estancar” (JASPERS, 1968, p. 312). De fato, o ser humano hoje parece intuir o corroer de uma “substância” que foi confiada à humanidade na sua origem.
Para Jaspers, é, no entanto, somente diante da perda que o ser humano se apercebe do que perdeu. O autor supõe que “num futuro próximo, porém, nem disso o indivíduo terá consciência porque nem sequer o compreenderá” (JASPERS, 1968, p. 312), e diz que o fato de identificarmos certas questões e respostas para elas, não significa, no entanto, e não leva por si só ao “conhecimento de uma via integrante” (JASPERS, 1968, p. 312). Ou seja, há um processo necessário, entre o que se sabe e o que se faz.
Um prognóstico como este seria fatalista, pois implicaria em não tomar em conta que o ser humano é um ser de transcendência, razão pela qual o inesperado sempre nele ou a partir dele pode se dar. E, para além de prognósticos, no fim das contas, o que realmente importa é o que busca e o que quer o ser humano, ou seja, na dimensão do futuro isto implica na questão que tange ao que, de fato, importa ao ser humano. A autenticidade dos seres humanos que viverão no futuro, no entanto, só se realizará se a existência deles estiver sustentada pela dignidade e no valor segundo o modo como foi sedimentado pela humanidade ao longo de sua história, acrescido da realização de sua liberdade individual.
Diante da crise e da frustração resultante situação levada a cabo neste modo de existência, há uma saída importante a ser considerada, segundo Jaspers, que implica em voltar-se para uma “economia de restrição ao fundamental mesmo na iminência do fim de todas as coisas” (JASPERS, 1968, p. 317). A mudança no rumo das coisas do mundo e da atual situação está na dependência de cada indivíduo e na decisão livre dele sobre a condução da ação que ele empenha. Mesmo diante de um quadro de incertezas, é necessário considerar que seres autênticos lutam noplano das possibilidades. Não participar da luta no nível das possibilidades, no entanto, é sequer poder compreender o que está em jogo. A “vontade parasitária de subsistência” (JASPERS, 1968, p. 319) impede um encontro verdadeiro, autêntico, onde o que está, de fato, em jogo são “decisões essenciais”. Identificar as questões essenciais é o que há de mais complexo, mas esse é o caminho de encontro do fundamento do ser-si-próprio, e da substância e da atualização do ser humano.
Para Jaspers uma prognose atualizante pode chegar a concluir sobre a questão do presente concreto que queremos para nós, e por outro lado também à questão do tipo de realidade que produzimos para nós. Não podemos excluir o fato de que o ser humano tem temor da liberdade do ser-si-próprio. No entanto, mesmo que consideremos todo o comprometimento do ser humano com os mecanismos em voga não podemos dizer que não há esperanças, baseados em fatos concretos e que o ser humano não possa realizar a sua historicidade com base em suas origens. A esperança é que “no despertar à beira do abismo, poderia surgir o homem independente capaz de assumir, de facto (sic), o rumo das coisas e manifestar o ser autêntico” (JASPERS, 1968, p. 322). Há que se considerar também que não há realização plena para o ser. Há sempre um resto não realizado. Ademais, é necessário para que possa ser, mesmo que parcialmente, que o indivíduo atualize constantemente o seu destino.
Segundo Jaspers, a postura do indivíduo diante do mundo é o passo fundamental no sentido de uma “perspectiva atualizante do indivíduo” (JASPERS, 1968, p. 278). “O ser-si-próprio constitui o valor que, só contra o mundo, é susceptível de nele dar entrada” (JASPERS, 1968, p. 278). Esta via, contra o mundo, no entanto, segue do mundo para a solidão. É o ser-si-próprio que tenta renunciar ao mundo, adotando uma posição negativa. O indivíduo inserido no mundo de forma positiva, seja no seu cotidiano, seja por meio da família, do conhecimento histórico ou científico, no campo do ensino ou da administração pública não dotará a via negativa e acósmica. Uma segunda via é aquela na qual o indivíduo opta pelo caminho que se dirige ao mundo, sem, contudo, excluir o movimento contra o mundo, uma vez que o ser-si-próprio não se encontra na possibilidade de desenvolver-se com plena satisfação sem encontrar problemas e conflitos diante de si.
Na atual situação do tempo o indivíduo é de tal forma absorvido pelos “mecanismos irrefreáveis da existência, em que cada vez mais abismadamente neles se integra” (JASPERS, 1968, p. 279), e que torna inviável que não se veja envolvido em uma comunidade de interesses que supostamente protege a existência individual. Diante das ameaças deste mundo que se mostra voraz na tentativa de desviar o indivíduo da busca pelo ser-si-próprio é grande a motivação de se posicionar contra o mundo. Para Jaspers, esta via só é alcançável para o indivíduo que se condena ao fracasso antes de qualquer outra iniciativa. Cairá no vazio sem se desligar do mundo aquele que pretende bastar-se a si mesmo, solto do mundo, e que direcionar sua existência calcada apenas sob o lastro de uma situação financeira cômoda. Este “retira-se numa fuga espúria do mundo, exprobando-o a fim de, mediante a recusa, atribuir valor ao próprio ser” (JASPERS, 1968, p. 280).
A problemática consiste em que não é possível não fazer a experiência das asperezas deste mundo, porque esse é o único caminho possível na direção da consciência de si. “Não é possível saltar por cima da realidade do mundo” (JASPERS, 1968, p. 280). O indivíduo não deve se furtar da convivência e da participação nos espaços e organizações de poder, e deve fazê-lo, no entanto, sem se submeter a eles, sem pode eles ser absorvido. Deste modo, ele permanece ativo dentro de certos limites arcando com as consequências da existência com a sua dimensão solitária, mas sem deixar de agir. Um certo “pudor ante o ser-si-próprio” (JASPERS, 1968, p. 280) compõe o princípio deste modo de agir. Da mesma forma, os sofrimentos advindos da inserção do indivíduo no mundo do trabalho no nosso tempo, onde o trabalho remete a experiências que ofendem a dignidade humana apontam para o fato de que a existência consiste no diálogo do ser humano com o transcendente. Trata-se, então, de que é necessário suportar a desilusão sem, contudo, paralisar a vontade de ação. O ser-si-próprio só se viabiliza nesta tensão, sem exclusão de qualquer uma das dimensões e evitando submeter-se às tentativas de domesticação e uniformização impostas pelo mundo da técnica como modalidade suposta de vida autêntica.
Um dos males da técnica é que esta afastou o ser humano do presente imediato, mas diante desta realidade novas exigências e tarefas se impõem. Trata-se, sobretudo, da necessidade da retomada da “imediatidade do mundo em relação a todos, a contiguidade das coisas; os novos pressupostos, a comportarem crescentes possibilidades, devem ser postos ao serviço do homem” (JASPERS, 1968, p. 282). A questão fundamental reside em que a racionalização dos meios de vida deveria alcançar a dimensão individual fazendo com que o indivíduo esteja “presente no refletir, ao amadurecer, numa real intimidade das coisas que são as suas” (JASPERS, 1968, p. 282). Para além do uso da técnica e sua praticidade, que viabiliza as condições materiais da existência, a novidade consiste na conquista da liberdade para além e não na submissão ao campo fisiopragmático. De modo semelhante, o conhecimento cuja finalidade é a utilidade imediata leva à deserção do ser humano. “Enquanto, porém, o conhecimento se manifestar como exigência de claridade, o homem alcança nele a consciência do seu próprio ser” (JASPERS, 1968, p. 285).
Jaspers sustenta que o problema mais agudo é o “agonizar da cultura” cuja base sísmica é o crescimento demográfico vertiginoso – já observado por ele e certamente alcançando seu ponto mais agudo na atualidade. A questão central consiste em saber se o modo de organização da existência no momento atual implica em um perigo tal diante do crescimento demográfico que sufoque o “espaço vital de cada indivíduo que acabe por sufocar espiritualmente o homem no plano da massa anônima (…). Possível será que o homem venha a ser destruído pelos meios que criou em vista dos fins, isto é, da própria existência” (JASPERS, 1968, p. 311).
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3 A busca do “ser-si-próprio” e a busca de sentido diante da situação atual
Nos nossos tempos, diz Jaspers (1968), inicia-se um confronto com aqueles que ainda são eles próprios, ou seja, uma verdadeira “campanha contra a nobreza” (JASPERS, 1968, p. 295), que se direciona especialmente às almas, ao desenvolvimento da personalidade. Deste modo, crescerá ainda mais a massa de indivíduos anônimos que são incapazes de “uma verticalidade interior própria” (JASPERS, 1968, p. 295). O que está em questão é a personalidade do indivíduo, pois o que será destroçado são as bases que sustentam a humanidade desde tempos muito remotos. Os instintos do ser humano comum se apresentam hoje cada vez mais ameaçadores, pois se aglutinam aos fundamentalismos religiosos e políticos e tendem a alcançar uma hegemonia e uma uniformização geral na organização da massa anônima.
A humanidade está acometida de um desespero e ainda uma inconsciência que é consequência do “hábito imunizante de desesperar que, considerado objectivamente (sic), tanto pode ser fim como princípio” (JASPERS, 1968, p. 305-306). O ser humano, no entanto, não pode se esquivar, não pode “desertar” para consciências irreais, pois terá de reconhecer o que com ele se passa. Por outro lado, algumas medidas fictícias vêm sendo tomadas pelo indivíduo e não menos pela humanidade como um todo, que são certa forma de apaziguamento, desde um “gozo estupefante diante das coisas da existência” (JASPERS, 1968, p. 306) e uma volta artificial à natureza, vivendo uma paz falsa.
A forma do ser humano estar no mundo dá a esta época, segundo Jaspers (1968), certa fisionomia – que se caracteriza pelo que se pode observar “quer na revolta da obstinação, quer no desespero do niilismo, que no desamparo de uma maioria truncada, quer numa busca delirante que despreza qualquer ponto de referência finito e se opõe a todo o labor estimativo de sondagem harmonizante” (JASPERS, 1968, p. 223). A consequência de tal situação é que o próprio ser humano em nada encontra sentido, nem mesmo nele próprio e se torna indiferente diante do mundo que o cerca. O ser humano atual se encontra desagasalhado. Para Fromm (1968), se quisermos saber quem é o ser humano não devemos procurar a resposta nas possibilidades que ele apresenta, mas sim nas condições da existência, pois é dessas condições que surge o ser humano que ele vem a se tornar. A humanidade – cada ser humano a carrega e muitas são as manifestações possíveis.
Para Morin, é necessário ultrapassar a noção abstrata de ser humano presente no humanismo, que o concebe limitado ao homo sapiens, faber e ecomomicus, pois além de sapiens o ser humano é também homo demens, para além de faber é mitologicus, para além de economicus é ludens, poético, etc (MORIN, 2011).
A existência assentada no automatismo e na atividade espiritual inconsistente, segundo Jaspers (1968), não abre ao ser humano caminhos de cooperação para edificar uma existência que o satisfaça substancialmente. Neste contexto, não há encorajamento e o pessimismo se desenvolve e leva à renúncia diante de possíveis ações positivas que poderiam ser empreendidas. Nessas circunstâncias, a criatura humana se permite a despreocupação, a satisfação e o otimismo diante da própria existência. Esta atitude, apesar de positiva, está mais voltada para uma conformidade do que a uma positividade. Segundo Jaspers, a transcendência encontra-se dissimulada, portanto, só poderá ser alcançada pelo ser humano por meio do seu esforço próprio.
O homem é sempre mais do que aquilo que de si próprio sabe. Não radica em um estado invariável, antes é um permanente devir; a sua existência não se processa como simples duração, mas através da liberdade, nela se vem a manifestar uma possibilidade, liberdade pela qual ele decide consoante uma acção (sic) efetiva da sua própria realidade (JASPERS, 1968, p. 226).
Para Moreno, “a tarefa do nosso século é reencontrar uma posição para o homem no universo” (MORENO, 1993, p. 15), o que implica na criação de uma nova realidade, por meio do restabelecimento da sua capacidade de se vincular ao outro, de sua capacidade cósmica, original e divina de criar. Para Moreno o ser humano é este ser de vínculos, ser espontâneo-criador e um ser cósmico. Afinal, o ser humano não existe isolado, sem “uma ‘célula’ mínima: o vínculo – unidade indivisível de seu meio ambiente. Não existe o ‘eu sou’, e sim o ‘eu sou em relação à’” (CUSCHNIR, 1992, p. 77).
Para Jaspers, no atual momento, onde o indivíduo vive frustrado e isolado em seu vácuo existencial, um princípio de saída é estabelecer “um compromisso real com o outro, numa base de fidelidade” (JASPERS, 1968, p. 306). Ou seja, trata-se de que o ser humano encontrando-se em uma situação limite, diante da qual não há mais o que fazer, ainda lhe resta algo. Este algo, que mesmo diante do nada resiste, mesmo em momentos de “queda vertical”, quando as possibilidades de realização do seu mundo imediato já estão esgotadas, o ser humano se empenha ainda em tornar concretas as exigências do tempo futuro. Consiste em dizer que o ser humano ainda diante das situações limites é capaz de transcender a realidade dada e por meio da sua capacidade de criação espiritual mudar o seu destino.
Cabe a pergunta sobre o que vem depois do nada, ou o que o ser humano é capaz em meio à descrença no tempo da queda vertical. Jaspers assinala que na descrença a “força do ser-si-próprio” é capaz de gerar um “gesto interior de promoção face ao mistério”. (JASPERS, 1968, p. 307). Em princípio, diz Jaspers,
a fim de remover causalidades externas, despreza o que da liberdade provenha ou que por ela se perca. Tem-se por chamada a altos desígnios e situa-se na tensão da violência sobre ela exercida, no impulso que se opõe ao mero existir, na flexibilidade do relativo, na paciência expectante, no carácter exclusivo de um compromisso histórico. Sabe-se, de antemão, condenado ao fracasso e é no fracasso que traduz o hieróglifo do ser. (JASPERS, 1968, p. 307)
Há, pois, como que uma suspensão do tempo cada vez que o ser humano está no processo de realização do ser-si-próprio, possuído por uma incondicionalidade. O movimento de busca ou realização do ser é contínuo. Não há nada que esteja determinado e que responda ao ser o que terá de fazer e como agir. Apenas orientado pelo passado, deverá tomar a decisão do caminho a tomar, “estabelecendo o que a situação, na sua dimensão espiritual, para ele representa, em que forma se tornará consciente ou segura do próprio ser, o que, em absoluto, quer, a quem nela se dirige e quem, solicitado no seu íntimo, escuta (JASPERS, 1968, p. 307-308). Este é o fundamento, sem o qual o mundo do indivíduo não sairá do abismo. O indivíduo necessita, antes de mais nada, “tornar-se ele próprio, a fim de, a seguir, se entregar a um todo, inserido numa comunidade” (JASPERS, 1968, p. 308), caso quiser se transformar num mundo. “Sem esta base, o mundo do homem não passa de um redemoinho” (JASPERS, 1968, p. 308). E cada ato que provenha do ser vivido como si-próprio já é um princípio de recriação do todo.
Jaspers define o ser-si-próprio como a “vida que se quer inteira, a qual só é realizável através de compromissos válidos” (JASPERS, 1968, p. 287). No atual momento o compromisso tornou-se algo relativo, porque sua exigência se artificializou, o ser é submetido ao automatismo das funções que é convocado a assumir no mundo da técnica, das fórmulas autoritárias e das leis. Assim, a tarefa real do ser humano se perde, bem como se perde a possibilidade do incondicionalismo, a paralisia se impõe e a desconexão da liberdade se efetiva. Desse modo, a narcotização da existência se efetiva, afinal, a existência submetida às fórmulas mecânicas e valores materiais se esquece de si mesma.
Nesse contexto de realismo aparente a consciência do caos aparece e a insistência com novos compromissos se manifesta, além da crença religiosa e da autoridade que também se tornam recursos para os quais se apela. Contudo, estas questões não levam a um compromisso autêntico, pois este “só é possível a partir de indivíduos livres circunscritos a uma concreta comunidade” (JASPERS, 1968, p. 287). Ou seja, a autenticidade só se realiza nesse mundo a partir de uma dimensão positiva que só se efetiva no campo de um compromisso real.
A negação dos compromissos exteriores revela a inautenticidade e leva ao caos interior, dado o desaparecimento do alvo da revolta, que só é autêntica no sentido da demarcação do espaço da liberdade. Somente o compromisso livre livra o ser humano da “desesperada revolta contra si-próprio” (JASPERS, 1968, p. 288).
A tarefa que sobra ao ser humano atual se resume em correr o risco, mesmo diante do nada, e buscar, tomando consigo suas origens, a direção da vida e sua totalidade, com coragem, a despeito de tudo. A existência implica nesta coragem. Coragem é existir, a despeito de tudo (TILLICH, 1991). Este processo consiste em um movimento paradoxal na busca de “uma nova pátria na apatricidade universal” (JASPERS, 1968, p. 289). Este movimento implica o modo como o ser humano se estabelece no mundo com os outros para que possa realmente ir ao encontro dessa nova pátria no plano histórico.
O mundo carece da proximidade de seres autênticos, pois isso é o que de mais verdadeiro se revela na existência. O que liberta o ser humano da solidão é o próprio ser que na sua autenticidade, mediante um compromisso real se liga a outro por meio de laços de solidariedade. “Realidade invisível do essencial é este circuito comunicante de seres autênticos” (JASPERS, 1968, p. 296). Essa aproximação de seres autênticos permite um convívio de maior qualidade e profundidade e é a “garantia mútua da existência do ser” (JASPERS, 1968, p. 297), além de ser por meio dela que o ser chega à consciência de si-próprio.
A inserção histórica, segundo Jaspers, por onde a incondicionalidade da existência e sua transcendentalidade pode se viabilizar, por meio de um compromisso autêntico, não se realiza de modo automático, ao contrário, somente se pode falar dela no sentido do apelo. Pois, “manifesta-se como dinamismo, na veneração, como concentração no labor profissional e, no amor erótico, como exclusividade” (JASPERS, 1968, p. 289). A inserção histórica, a incondicionalidade da existência, a transcendentalidade e o compromisso autêntico, andam juntos. Enquanto a distância em relação ao mundo garante ao ser humano a liberdade, a inserção histórica evita a dispersão e lhe garante o ser-si-próprio.
Jaspers (1968) considera estes compromissos como fundamentais para a realização do ser-si-próprio e na elaboração do sentido da existência. Para ele o dinamismo da veneração retém a noção das revelações grandiosas e profundas que emanaram do humano ao longo da história. Por meio da veneração o indivíduo
mantém-se fiel ao que, no seu devir, actua como tradição; capta a sua substância naqueles raros indivíduos à sobra dos quais toma consciência de si próprio, volta-lhes um respeito constante e piedoso, conserva, como exigência absoluta no presente, pela memória, o que, no mundo, já não possui realidade alguma. (JASPERS, 1968, p. 290).
Se, no entanto, não emana conteúdo e dignidade naqueles com que o indivíduo convive, este colherá frustração e deverá estar preparado e ser capaz para, a fim de permanecer com substância, exercitar o discernimento da verdadeira dimensão humana.
Com relação ao amor erótico é importante destacar o que Jaspers quer dizer com relação a esta proposição como via de acesso ao sentido. Para o autor, a ausência de disciplina no erotismo distancia o indivíduo do ser-si-próprio. É necessário um compromisso absoluto para que o ser humano se encontre com a totalidade.
A veneração é como que o fundamento do ser-si-próprio, ao passo que a atividade (sic) profissional é a sua possível concretização no mundo e o amor exclusivo de um indivíduo, bem como a absoluta disponibilidade em relação a ele, é a verdade de sua alma como projecção (sic) sem a qual não poderá escapar a uma invencível rudeza. (JASPERS, 1968, p. 292)
Segundo Jaspers, à parte das condições indignas que são encontradas em grande parte dos contextos de trabalho no mundo contemporâneo, ainda há possibilidade de que pelo trabalho o indivíduo possa revelar o ser-si-próprio. Isto se dá à medida que neste campo seja possível ao indivíduo traçar um rumo em longo prazo, que considere uma dedicação, um zelo que venha da vontade de construir algo concreto motivado por uma ação consciente. Caso contrário, se as condições adversas impedem o indivíduo de seguir o caminho do ser-si-próprio por meio de um trabalho com sentido e o levarem à revolta, a alternativa que lhe resta, segundo Jaspers (1968), é “fazer a experiência da contiguidade das coisas e, ao mesmo tempo, a verdade de difícil acesso e nunca de exigir a outros é que é a de, conquanto seja bigorna sob o sofrimento, poder assumir o homem aposição activa (sic) do martelo” (JASPERS, 1968, p. 291). Nesta elaboração vemos uma aproximação entre o que Frankl desenvolve sobre o sofrimento como via de sentido, desde que o indivíduo nele assuma uma posição ativa de transformação de si mesmo diante da situação dada.
As três formas de inserção e compromisso apontadas por Jaspers lembram as vias pelas quais o ser humano pode encontrar sentido, segundo Frankl. Para Frankl (1991), o sentido verdadeiro deve ser realizado no mundo, não na psique ou dentro da pessoa, pois o ser humano é um ser de transcendência, ou seja, ele tem a capacidade, a potencialidade e a necessidade de ir além de si, de se dirigir para algo ou para alguém além de si. A autotranscendência da existência é, segundo Frankl, uma característica constitutiva do ser humano. Ainda que o sentido da vida seja dinâmico, pois não é o mesmo para todos os indivíduos, Frankl (2003) aponta três vias pelas quais o sentido pode se dar: por meio dos valores de criação, dos valores de vivência e os valores de aceitação. Os valores de criação implicam a prática de um ato ou a criação de algo, de uma obra, um trabalho; os valores de vivência implicam a vivência de alguma coisa, ou pessoa – o que significa amar, ou seja, “captar uma pessoa na sua unicidade ou irrepetibilidade individuais” (FRANKL, 2003, p. 32). Trata-se, além da vivência de um encontro com outro ser humano, da experiência da beleza, da bondade, da verdade, da natureza ou da cultura; e os valores de aceitação implicam o sofrimento. É no sofrimento que o ser vai ao profundo de si mesmo, supera a superficialidade e é capaz de encontrar-se com o si-próprio, o ser-em-si. No sofrimento somos capazes da autotranscendência e de encontrar um sentido profundo mesmo no limite. Diante de uma situação que não somos capazes de mudar, ainda nos resta uma alternativa, pois nesta situação “somos desafiados a mudar a nós mesmos” (FRANKL, 1991, p. 101). Ou seja, sofrimento pode ser um via de sentido desde que o indivíduo nele assuma uma posição ativa de transformação de si mesmo diante da situação dada. Em todos os casos trata-se de que o sentido só pode ser encontrado pela autotranscendência, indo além de si, dedicando-se a algo. Segundo Frankl “a auto-realização só é possível como um efeito colateral da autotranscendência” (FRANKL, 1991, p. 100).
Frankl (2001a), ao se referir à questão do sentido da vida insiste que não se trata da existência de um sentido geral ou abstrato, muito menos o sentido massificado ofertado no mundo contemporâneo. Trata-se de que cada pessoa deve procurar o sentido específico em cada situação e seguindo a sua própria missão na vida. A questão vista de forma ainda mais aprofundada, implica em que não se trata de perguntar pelo sentido da vida, se a vida tem um sentido, como se existisse um sentido em si, que é dado. Trata-se, na verdade, de que a pessoa mesma é indagada sobre o sentido que ela dá à vida, “cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida” (FRANKL, 2001a, p. 98). A resposta à vida só pode ser dada por meio da responsabilidade. Para Frankl a responsabilidade é a “essência propriamente dita da existência humana” (FRANKL, 2001a, p. 99). Consiste nisto, então, que o verdadeiro sentido será realizado não dentro da pessoa ou na psique, mas no mundo – o que remete à autotranscendência da existência – cujo efeito colateral é a auto-realização. Do mesmo modo como em Jaspers, vimos que em Frankl as vias de sentido se oferecem por meio da inserção no mundo, na experiência e na vivência do mundo.
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Considerações finais
A situação humana no mundo contemporâneo revela que o ser humano sente-se de tal modo isolado no mundo que não se reconhece como força capaz de transformar a sua realidade. Este ser que se julgou o centro do mundo, um semideus agora está diante de um sentimento de impotência, se acha cativo e se vê sendo tragado pelo movimento das coisas, que lhe aparecem como criações abstratas. A ciência moderna, pautada em abstrações e classificações excessivas, não correspondeu às expectativas por ela criadas e a existência pautada em interesses apenas se alastrou mais e contribui para a destruição da consciência da substancialidade.
O ser humano encontra-se diante de um desenraizamento, afetivamente distante do mundo que o cerca, do seu semelhante e sem saber quem é e em busca do que está. As estruturas da unidade estão arruinadas, a fragmentação da totalidade se estende até o cerne, até o nível psíquico e espiritual. Haja vista o adoecimento espiritual, cujas expressões podem ser verificadas nos níveis de violência, no desmesurado consome de drogas lícitas e ilícitas, na depressão e na desenfreada busca de prazer sexual, conforme apontado por Frankl (2001b). Criou-se, neste modelo civilizacional ocidental, uma massa de indivíduos anônimos que se veem sem de poder de reação e incapazes de uma verticalidade interior própria. O ser humano, pois, se encontra acometido de um sentimento de insegurança vital.
O ponto delicado neste contexto é o destroçamento das bases que equilibram a humanidade desde tempos muito antigos chegam à interioridade e à profundidade do ser, ameaçando a sua dimensão espiritual. Está em jogo a perda do mundo próprio, pois a fisionomia da crise apresenta entre as suas características a quebra da confiança básica necessária para a sustentação do ser-si-próprio. Nesta situação a angústia vital se precipita, pois o elemento transcendental da existência se vê ameaçado. Os problemas técnicos foram sobrepostos aos problemas humanos e o ser humano submetido a uma função que deverá cumprir e pela qual terá valor. Impera uma agonia, uma expressão plástica e apática diante do vazio, um mutismo, um apaziguamento após a indecisão, uma abstenção e um sentimento de desesperança onde a sensação é de que a possibilidade de ser como ser humano está perdida.
A resposta ao que restou só pode ser dada a partir do indivíduo como ser-si-próprio, a partir de uma volta ao que é autenticamente humano – a sua potencialidade espiritual. A resposta implica a tarefa de recriação do mundo em todas as dimensões, sem que antigos pressupostos sejam abandonados e sem que novos pressupostos sejam excluídos. A conquista da tão almejada liberdade e a prática da mesma consistem em que o ser humano seja capaz de colocar limites a este modo aplainante e burocrático de organização da existência, com suas tendências dissolventes, e de implementar uma existência responsável.
O caminho é o caminho em direção ao ser-si-próprio, o caminho onde o vínculo entre ser e ser, e entre os seres humanos e o mundo circundante. A saída para a frustração e do isolamento no vácuo existencial exige um compromisso com o outro sustentado por uma fidelidade. Neste sentido, a fidelidade deve ser resgatada do limbo para voltar a ser um princípio regente das relações com o outro. As mudanças implicam em ações e as ações implicam o indivíduo a partir de uma ação autêntica resultante dos modos de ser-si-próprio. O caminho também exige que as experiências de aspereza inerentes à vida não sejam negadas, pois é por meio delas que o ser chega à consciência de si.
Tudo isso implica um esforço quase sobre humano, despertado e acolhido das profundezas do ser-si-próprio, tocando a sua autêntica capacidade espiritual e de transcendência, para que não permaneça o ser humano num mero existir, frustrante e sem sentido, sem se reconhecer como ser capaz de criar, de amar e de suportar o sofrimento. O ser humano tem vontade de sentido e necessidade de transcender a si mesmo – trata-se de um fenômeno antropológico de base – de sair do ensimesmamento e de olhar para além de si, para um outro, para uma causa. O sentido da existência também se baseia nisto – na possibilidade de autotranscendência e esta é uma questão espiritual fundamental.
É na identificação destas questões, das questões essenciais, que reside a maior fragilidade e maior complexidade deste processo que o ser humano é conclamado a fazer a fim de chegar ao fundamento do ser-si-próprio e da substância espiritual, da atualização de si mesmo. A humanidade só superará a crise pela via dos compromissos válidos, da responsabilidade, da criação espiritual. Para transformar o mundo, o seu mundo – o que significa o mundo próprio, o humano e o mundo circundante – é necessário que o ser humano comece por si mesmo, integrando-se como ser-si-próprio, integrando-se como ser espiritual, portanto, capaz de criar outros modos de pensar, outros valores, e, depois outros modos de se relacionar com o outro e com o mundo, – o que implica criar outras formas de se vincular à religião, à política, criar outras estruturas econômicas, etc.. Certamente este caminho não é tão didático na realidade cotidiana, pois é necessário que o indivíduo simultaneamente se insira em uma comunidade de semelhantes e que tome em conta o todo começando por si mesmo. No entanto, para que se compreenda pedagogicamente é importante que o processo seja compreendido nesta direção que vai do restabelecimento do ser-si-próprio em direção ao outro e ao todo, pois não é possível transformar as circunstâncias para que somente depois seja transformado o indivíduo.
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