Fonte: Comunicação e sociedade. DOI: 10.17231/comsoc.39 (2021).3175. Submetido: 26/01/2021 – Aceite: 21/05/2021. Direitos de autor: Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são “Todos os direitos reservados”, à exceção de indicação em contrário.
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Recensão do Livro Advanced Introduction to Platform Economics. Mansell, R., & Steinmueller, W. E. (2020).
Elsa Costa e Silva
Tradução(ões): Book Review of Advanced Introduction to Platform Economics [en]
1 O livro Advanced Introduction to Platform Economics é uma proveitosa contribuição para a compreensão das plataformas digitais, um fenómeno marcante nas sociedades contemporâneas. Com uma proposta condensada em termos de porte, mas abrangente no seu alcance e aprofundamento dos temas, o livro concorre para um debate recorrente sobre a necessária regulação destas plataformas. Sendo certo que estas contribuem positivamente para a sociedade, informando, educando e entretendo uma vasta camada da população, é também certo que existem muitos prejuízos associados à sua atividade.
2 Esta obra apresenta uma análise alargada das plataformas. O título poderá até ser enganador para quem for procurar uma abordagem estritamente económica às novas plataformas digitais e aos seus modelos de negócio. O livro trata dessas componentes, é certo, mas trata de muito mais, desde as implicações legais, sociais e culturais dessas plataformas até à explicação dos contextos políticos que as tornaram uma realidade global. Por isso, à abordagem da economia clássica os autores acrescentam as perspetivas da economia institucional e da economia política crítica. O quadro destas novas plataformas fica assim mais completo relativamente aos seus benefícios, custos e riscos.
3 A proposta dos autores vai no sentido de tratar estas plataformas como uma inovação radical que, pela diferença fundamental em relação a métodos ou processos prévios, está associada a mudanças muito significativas na sociedade, a nível social, político e económico. Na sua origem, identificam-se duas mudanças fundamentais: a conectividade potenciada pela world wide web e a adoção de padrões e protolocos comuns na arquitetura da rede. Ou seja, estas plataformas fazem parte de um processo mais vasto que tem vindo a ocorrer nas sociedades contemporâneas: a digitalização e a datificação (capacidade aumentada de recolher e tratar dados).
4 Ninguém duvida de que as plataformas digitais são um fenómeno incontornável das sociedades contemporâneas (van Dijck et al., 2018). Uma das primeiras contribuições mais significativas deste livro é a proposta de uma definição operacional do que são estas plataformas digitais (Capítulo 2). Ou seja, esta obra explica porque podemos considerar que o Facebook, que é uma rede social que conecta “amigos”, é equivalente à Amazon, um serviço de comércio eletrónico. Muitas vezes, consideramos este grupo de empresas globais tecnológicas como um conjunto homogéneo apenas devido à sua dimensão e porque todas operam a partir da internet. Mas há aspetos fundamentais que as unem e que vão para além do espaço onde desenvolvem a sua atividade (onde, aliás, encontramos muitos outros serviços). É nessas características que Mansell e Steinmueller se apoiam para identificar os elementos definidores de plataformas digitais: conteúdo desejável, modelo de negócio que garante a sustentabilidade do serviço e o tratamento de dados (obtenção, recolha e utilização de dados dos utilizadores). Há um quarto elemento que pode não se verificar em todos os casos, mas que é, ainda assim, relevante para compreender o fenómeno das plataformas digitais: a provisão de serviços complementares.
5 A tradicional análise económica, afirmam os autores (Capítulo 3), tende a basear-se em pressupostos que não se verificam nos mercados reais, o mais importante dos quais é o facto de consumidores e produtores atuarem com base em informações completas. Assim, esta será uma das principais razões para justificar intervenções regulatórias neste mercado das plataformas digitais já que estamos perante uma falha de mercado. O problema é que estas plataformas operam em mercados multilaterais (multisided), alimentados por economias de escala e de gama, o que conduz a monopólios “naturais”. Quanto maior é a rede, maior é o interesse do consumidor em permanecer nela: por exemplo, quanto mais amigos um indivíduo encontra no Facebook, mais interesse tem em pertencer a esta rede, o que significa que as plataformas concorrentes terão custos muitos maiores para tentarem entrarem neste mercado. E ainda que teoricamente estes monopólios estejam vulneráveis a inovações tecnológicas que podem oferecer soluções de mercados que criem nova concorrência, a verdade é que essa vulnerabilidade nem sempre é posta à prova.
6 O principal argumento para contestar uma perspetiva meramente economicista das plataformas digitais assenta no facto de que a assunção clássica, que presume a inovação tecnológica como o motor da mudança — e, portanto, naturalmente, novas tecnologias iriam perturbar o funcionamento do mercado, assegurando modos de funcionamento mais competitivos —, desconsidera as condições mais vastas que permitem assimetrias de poder. Ou seja, não são apenas as condições concorrenciais que influenciam o exercício de poder nos mercados. A economia institucional contribui para a discussão, chamando a atenção para as normas e regras que sustentam os valores públicos e privados e as mudanças de poder entre os diferentes agentes sociais. Desta forma, as assimetrias resultam de diferentes fontes, nomeadamente de falta de alinhamento entre as operações das plataformas e os valores públicos. Para os investigadores da economia política, as assimetrias de poder devem ser explicadas também à luz da tradição marxista, que analisa a exploração nas relações entre os utilizadores e os proprietários das plataformas, a predominância do capital privado e dos modelos de negócio baseados na publicidade (Fuchs, 2017).
7 A questão é que existem problemas sérios com estas plataformas, nomeadamente o facto de distribuírem conteúdo ilegal e muitas vezes prejudicial. Ainda que economicamente bem-sucedidas e efetivamente procuradas pelos consumidores (o que, à luz da económica clássica, significa que são “organizações” eficientes), estas plataformas produzem muitas externalidades e efeitos colaterais que atentam contra valores públicos. E o problema é que estas resultam diretamente do seu modelo de negócio, pelo que estratégias de mitigação ou resolução dificilmente terão sucesso. Este quadro é ainda agravado pelo facto de estas plataformas digitais serem tão grandes que é difícil a estados individuais conseguirem impor regras. Há assimetrias de poder no mercado que não estão a ser combatidas, e assimetrias a nível mundial, entre os países onde estão situados estas plataformas e os “outros”.
8 Assim, e estando estas plataformas localizadas no norte desenvolvido, parece existir um imperativo para digitalizar todas as economias, sobretudo dirigido a países que estarão a ser deixados para trás, os do sul global. Um apelo à modernização e desenvolvimento (que relembra, de algum modo, os anos 60 e 70) que seria alcançado com a convergência tecnológica. Mas, como bem alertam Mansell e Steinmueller (Capítulo 7), a tecnologia (quer seja hardware ou software), por si só, não vai providenciar o desenvolvimento económico que se perspetiva: é preciso ter em conta os contextos locais, investir na educação e em competências digitais, assim como aumentar a conectividade. Combater o subdesenvolvimento tecnológico impacta nas desigualdades digitais e é essencial num quadro em que os meios tecnológicos são, como têm sido ao longo da história, meios de controlo e influência social e política.
9 O Capítulo 4 aborda a temática da inteligência artificial (IA) e a forma como estas novas tecnologias contribuem para aprofundar e intensificar o envolvimento dos utilizadores com as plataformas, através da análise de grandes bases de dados que providenciam “respostas” que podem imitar ou reproduzir o que seriam comportamentos humanos e direcionar publicidade orientada aos utilizadores. Isto é feito com base em algoritmos que permitem, por exemplo, ao Facebook sugerir “amigos” ou à Netflix recomendar séries e filmes aos seus subscritores. Outras questões mais problemáticas podem ser a utilização de IA para prever comportamentos e envolvimento, e a o facto de ser dado poder discricionário a estas práticas que resultem em decisões e ações efetivas. Por outro lado, a supervisão humana pode também resultar em enviesamentos ou preconceitos.
10 A solução para estas situações não é fácil nem linear, mas o maior receio diz respeito à falta de transparência destes sistemas (porque, muitas vezes, está em causa o âmago do modelo de negócio da plataforma) que interferem cada vez mais na vida dos cidadãos. O desenvolvimento da IA levanta questões a nível laboral, a nível da disponibilidade e acesso a informação jornalística, o que por sua vez pode ter implicação em termos da liberdade de informação e da expressão democrática do pluralismo e diversidade. Poderá ser, como alertam Helbing et al. (2019), que a democracia não sobreviva à IA. Estas vastas questões não são escamoteadas pelos autores do Advanced Introduction to Platform Economics que argumentam que,
à medida que as práticas comerciais de datificação continuam a modelar a indústria de conteúdos digitais das sociedades ocidentais, a questão é que implicações há para os valores públicos quando as plataformas operam com incentivos para gerir a economia da atenção. (pp. 72–73)
11 Uma das formas de responder a esta interrogação, relativamente ao desfasamento entre os valores públicos e os interesses privados, reside nas práticas regulatórias (Capítulo 5). Só que, escrevem Mansell e Steinmueller, a estratégia de auto-regulação, usada pelas plataformas para recusar qualquer tipo de intervenção externa, mais que auto-proclamada, tem que ser demonstrada, e falta informação essencial que permita uma verificação destas práticas. Os autores exploram os argumentos das plataformas, como o facto de a sua expansão global provar que há um valor associado aos seus serviços (ou seja, o mercado exerce a sua própria regulação), e também os códigos de práticas destas plataformas e a moderação de conteúdo que dizem efetuar. A discussão sobre a salvaguarda dos valores públicos prossegue analisando modelos de funcionamento de plataformas alternativas ao atual modelo de negócio das plataformas digitais e à utilização de dados pessoais dos utilizadores. Há algumas iniciativas que tentam aprofundar a barreira existente entre o público e o privado no controlo pelos dados pessoais. Outras formas de contornar as questões éticas relacionadas com as plataformas digitais estão no desenvolvimento de modelos de negócio baseados na subscrição ou com base em financiamento público. Contudo, estas alternativas estão longe de se apresentarem como verdadeiras concorrentes às plataformas digitais, sobretudo porque o seu alcance junto das audiências é limitado.
12 Por isso, os autores asseguram que a regulação externa é necessária, ainda que seja difícil um consenso sobre quais serão os padrões de um comportamento aceitável por parte das plataformas digitais. Há uma grande incerteza na forma como vai evoluir esta questão, ainda que uma mistura de medidas de auto-regulação com regulação externa — quer de Estados, quer de instituições independentes — se afigure como o mais provável. É claro que o campo a regular está cheio de ambiguidades, alertam os autores, mas há terreno para avançar — e isso à luz de qualquer uma das três perspetivas de análise utilizadas (economia clássica, economia institucional ou economia política).
13 Assim, e ainda que a literacia digital seja importante neste contexto para capacitar os cidadãos, é preciso mais. Há três áreas críticas onde mais realisticamente, acreditam estes autores, se pode esperar uma intervenção: implementação de algumas regras de regulação mais convencional; uma proibição de “datificar” comportamentos relativos a crianças e temas políticos; e, investimento em modelos de negócio alternativos que salvaguardem os valores públicos. O apelo de Mansell e Steinmueller é no sentido da reforma, certos que a tecnologia não é um destino, mas sim um meio.
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020.
Bibliografia
Fuchs, C. (2017). Social media: A critical introduction. Sage.
Helbing, D., Frey, B. S., Gigerenzer, G., Hafen, E., Hagner, M., Hofstetter, Y., Van Den Hoven, J., Zicari, R. V., & Zwitter, A. (2019). Will democracy survive big data and artificial intelligence? In D. Helbing (Ed.), Towards digital enlightenment (pp. 73–98). Springer.
Mansell, R., & Steinmueller, W. E. (2020). Advanced introduction to platform economics. Edward Elgar Publishing.
van Dijck, J., Poell, T., & De Waal, M. (2018). The platform society: Public values in a connective world. Oxford University Press. DOI : 10.1093/oso/9780190889760.001.0001
Autor
Elsa Costa e Silva é professora de economia política da comunicação e de jornalismo na Universidade do Minho. Os seus interesses de investigação centram-se na concentração da propriedade dos média, economia dos média e regulação. Publicou em várias revistas nacionais e internacionais. É coordenadora do Grupo de Trabalho de Economia e Políticas de Comunicação da Sopcom (Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação). Foi jornalista do Diário de
Notícias. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7215-6384. Email: elsa.silva[at]ics.uminho.pt. Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal
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