Recensão. Estado de Crise, de Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni
por Patrícia André
Análise Social, Vol. LIII (2.º), 2018 (n.º 227), 511-517.
(https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.14)
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Apesar de proliferarem as proclamações do fim da crise e os anúncios da retoma económica e do crescimento, a verdade é que para muitos a crise ainda paira por aí e – como diz Bauman quanto à modernidade – as notícias da sua morte parecem ser manifestamente exageradas. De uma ou de outra forma, ela ainda está presente no discurso público e mediático e, acima de tudo, nas ponderações e interações do quotidiano de muitos cidadãos.
Por isso, apesar de já não ser uma novidade editorial, retomar esta obra de Bauman e Bordoni é ainda muito oportuno e, na verdade, não menos interessante (re)lê-la agora – à distância dos dias quentes do pânico económico – para nos ajudar a compreender qual é, afinal, a verdadeira natureza da crise e o lugar que realmente ocupa nas estruturas que alicerçam a sociedade contemporânea.
Desde logo, este lastro da crise nas nossas vidas reforça a plausibilidade de uma das principais teses do livro e que vai logo enunciada no título Estado de Crise: é que já não é a crise, é, antes, um estado de crise. Bordoni avisa-nos mesmo, de forma radical, que “não há saída para a crise, nunca” (p. 80).
Mas já lá vamos. Antes, um breve contexto: Estado de crise (editado originalmente em 2014 e na tradução portuguesa em 2016) é um dos vários livros a duas vozes (Tabet, 2017), que marcaram os últimos anos da produção bibliográfica de Zygmunt Bauman – o sociólogo polaco (falecido em 2017) que foi um dos mais originais pensadores da contemporaneidade (Silva, 2017). Carlo Bordoni, sociólogo, jornalista e escritor italiano dedicase, em especial, à sociologia dos processos culturais e é um ativo comentador dos eventos sociais, políticos e económicos no espaço público. O encontro dos dois autores em “Estado de Crise” surge na sequência de um primeiro ensaio de diálogo que Bordoni (2012) incluiu no seu livro La società incisura.
Neste projeto de decifração da crise, os dois sociólogos falam de muitas crises, mas desengane-se quem espere encontrar um livro exclusivamente centrado na crise económico-financeira global que se desenrolou especialmente a partir de 2007. No entanto, ainda que não tratada explicitamente, é, inevitavelmente, essa crise – a única que hoje dispensa predicados para ser reconhecida à boa maneira das implicaturas conversacionais de Grice – que surge e ressurge de modo latente, como contexto e pretexto, ao longo deste ensaio. Bordoni assinala o facto de ser afinal “uma crise profunda de transformação social e económica com raízes no passado” e sublinha que para a “compreender e aceitar temos de voltar às suas causas” (p. 80). E é precisamente essa a tarefa que o livro abraça: descrever e explicar a situação multifacetada de crise em que nos encontramos e da qual a crise económico-financeira não será mais do que uma expressão.
Com efeito, apesar de o próprio livro se encontrar organizado em 3 capítulos que aludem especificadamente a diferentes objetos de crise – crise do Estado, crise da modernidade e crise da democracia – e cada uma destas crises ser identificada e caracterizada, não parece que os autores lhes atribuam nem fronteiras rígidas, nem sequer estatutos equivalentes. Ainda que esta arrumação analítica não seja feita explicitamente, nas descrições de Bauman e Bordoni a crise do Estado e a crise da democracia são, claramente, enquadradas na crise da modernidade, já que a verdadeira metacrise (assim identificada por Bauman, p. 157) que define o estado de crise se refere ao desmoronamento de uma das estruturas basilares da era moderna, tal como foi identitariamente construída. Assim, talvez o estado de crise possa ser descrito com mais precisão, não como uma soma ou conjugação de crises, mas como uma estrutura de variações da crise. Esta interpretação é sugerida pela forma como os autores falam das diversas crises e as relacionam entre si, pois não é avançada nenhuma conceptualização da crise que nos permita discernir com rigor analítico de que crise falamos sempre que se utiliza a locução crise. No entanto, os retratos instantâneos que os autores nos oferecem, com descrições vívidas das crises que assolam a contemporaneidade social e política e dos caminhos que levaram até elas, permitem-nos ensaiar uma leitura de articulação em que preferimos a figura da estrutura em detrimento da mera constelação. Explicando melhor, a ideia de uma grande crise com várias faces parece mais adequada às descrições dos autores do que a ideia da mera concomitância de crises – sem prejuízo daquelas faces continuarem a ser designadas como crises, pois apesar de serem elementos da estrutura mantêm características identitárias próprias que advêm dos sistemas particulares a que pertencem (e.g. economia, política).
A forma como, na perspetiva de Bauman e Bordoni, estas crises ou facetas se relacionam entre si, também convida a visualizá-las como estrutura de variações, pois parecem articular-se entre si de forma concêntrica, nuns casos, hierárquica, noutros, mas sempre interdependentes e incorporadas na fonte de filiação da estrutura e que, como já referimos, será a crise da modernidade.
De facto, os autores aludem a uma espécie de crise geral, cuja caracterização vai sendo afinada ao longo do livro – “a crise enfrentada pelo mundo ocidental” (p. 10), sendo dado especial destaque àquele que é entendido como um dos principais elementos da crise do Estado moderno: o divórcio entre poder (enquanto capacidade para levar as coisas a cabo) e política (enquanto habilidade de decidir que coisas são necessárias e devem ser feitas) (p. 34).
A separação entre poder e política é apresentada como razão essencial da ausência de capacidade executiva por parte do Estado para implementar soluções e respostas aos problemas colocados pela crise, e esta incapacidade do Estado traduz-se, por sua vez, numa das mais distintivas características da crise, não só do Estado, mas da crise em geral: a chamada crise de agência do Estado moderno, que assiste à transferência do seu poder de ação para forças supraestatais situadas no chamado “espaço de fluxos”1 (pp. 23-24).
1 Conceito adotado de Manuel Castells e que se refere a um novo espaço politicamente livre por contraposição ao clássico “espaço de lugares” das regiões politicamente separadas através das fronteiras dos Estados.
Para Bauman e Bordoni, o processo que terá levado a esta crise de agência terá uma dupla raiz: por um lado, as opções (predicadas de neoliberais) de desregulamentação, privatização e terceirização que foram, elas próprias, deslocando, ao longo das últimas décadas, algumas funções do Estado e com elas o seu poder de ação; por outro lado, o fenómeno da globalização que concorreu para a irradiação do poder do Estado-nação.
Ambas as dinâmicas assinaladas terão contribuído para a separação entre poder e política e, assim, para a crise de agência do Estado, na medida em que foram determinantes da diluição das fronteiras que permitiu a fuga do poder para fora dos seus limites, enquanto a “política continuou territorialmente fixada e restringida” (p. 35). Este desfasamento entre as exigências das dinâmicas globais e as formas de ação política meramente locais acaba por ser traduzido, em toda a sua amplitude, na chamada crise do modelo westfaliano, cuja “ruidosa insuficiência” tem amplificado a crise de agência do Estado numa verdadeira crise de soberania territorial (p. 36).
Para além do mais, a crise de agência do Estado reconduz-se também – e na medida em que a ação económica dos Estados se encontra enfraquecida – a uma crise do Estado Social, na sequência da sua “incapacidade de prover serviços sociais adequados” (p. 31) e mesmo do “desmantelamento dos nossos sistemas sociais ou de previdência”, ficando posta em causa “a existência de um fiador social” (pp. 76-77).
As instituições democráticas não poderiam sair imunes deste cenário em que se vai já desenhando o atual estado de crise, pois a crise do Estado condiciona as suas capacidades de agir como mediador social, regulador da economia ou garante da segurança (p. 179), o que diminui fortemente as condições da sua representatividade democrática. Mas é também a fuga do poder do Estado-nação para as forças supranacionais que sustentam a atual governança que constitui o âmago da crise da democracia representativa, na medida em que, livres da política, os novos agentes estão também livres da direção e controlo democráticos (p. 33). Além do mais, o divórcio entre os cidadãos e a política ameaça perigosamente transmutar-se numa situação de antipolítica favorável a populismos e nacionalismos, prelúdio de regimes tirânicos e autoritários (p. 27).
A centralidade da crise de agência do Estado e o seu carácter pivotal no estado de crise parece bastante evidente e, por isso, não surpreende que Bauman afirme que “estamos a atravessar múltiplas crises, porém a mais crítica delas – com efeito, uma ‘metacrise’ que torna todas as demais quase insolúveis – é a crise de agência, mais precisamente, da ‘agência tal como a conhecemos’, a agência do Estado” (p. 134).
No entanto, esta afirmação deve ser lida com cautela, já que afinal o estado de crise vem a definir-se, para o próprio Bauman, por outra metacrise bem mais radicular e que, como já foi mencionado acima, interpela o âmago da modernidade porque se refere à crença no progresso que constituiu uma das principais promessas do programa da modernidade. Nas palavras do pensador polaco: “pode-se argumentar que o colapso da confiança no predeterminado (e por isso mesmo garantido) ‘avanço na direcção definida desejável’ (…) forma a base de todas as demais crises que afectam a nossa herança”(p. 157).
A crise da modernidade adquire, deste modo, uma ascendência existencial sobre as demais expressões do estado de crise.
Com efeito, a ideia de progresso linear, unidirecional, portador de desenvolvimento e aperfeiçoamento contínuo, inerente à história e alicerce de uma cosmovisão otimista, tal como pressagiado pelo manifesto da modernidade, parece não ter sobrevivido às sucessivas falências a que as construções modernas têm sido sujeitas. Bauman recupera as palavras de John Gray: “para os que vivem dentro de um mito, ele parece um facto autoevidente. O progresso humano é um facto dessa ordem. (…) A espécie humana, claro, não está a marchar para lugar algum” (p. 156). Desfeito o mito do progresso, o medo toma o lugar da esperança e é esta ameaça perpétua e o desalento que acarreta que promove a substituição do império do progresso pela cultura do imediato em resposta ao colapso das certezas (p. 155).
Mas a fé no progresso não pode ser desligada do fundacional conjunto de aspirações modernas em relação às quais pode, afinal, ser entendida como instrumental: o domínio absoluto do homem sobre a natureza e a administração humana de todas as coisas humanas. É a procura da ordem em vez do caos, o desejo de debelar a contingência em troca de previsibilidade e o desejo do controlo pela razão em detrimento da submissão ao irracionalismo histórico. Estas aspirações consubstanciam a promessa moderna fundamental da segurança, mas são também vitais para a realização do outro valor supremo da modernidade, “a liberdade humana de se criar e afirmar: os seres humanos são livres de escolher o seu modo preferido de estar no mundo. Todas as formas estão à disponibilidade de todos” (p. 83) – relembra Bauman parafraseando Pico della Mirandola.
Apesar de ambos concordarem que o destino do apalavrado progresso moderno foi o desencanto e a amargura, Bauman e Bordoni exibem fundamentais divergências sobre o fado das demais aspirações modernas e, em especial, sobre o atual estatuto da modernidade.
Com efeito, Bordoni entende que as principais promessas da modernidade fracassaram (“foram retiradas”) e que a era moderna se encontra já bem distante (o italiano vislumbra-lhe o fim “nas revoltas de estudantes e trabalhadores, na revolução cultural importada da China de Mao e na primeira frustração de uma sociedade rica de consumo”, p. 118), o mesmo se passando com o período transitório que se lhe seguiu, a chamada pós-modernidade, que terá emergido nos anos 70 espraiando-se por uns meros, mas fulgurosos, 30 anos. Deste modo, para Bordoni, a crise da modernidade é este longo adeus que vivemos desde o início do seu desmoronamento (“desencadeado pelo contraste entre as condições dos trabalhadores e da classe dominante, a burguesia”, p. 93), passando pelo desabar das suas bases (abaladas pela desmaterialização do trabalho e a globalização, p. 94) e atravessando as fronteiras da pós-modernidade que “serviu para nos transportar para um futuro ainda não nomeado” (p. 101).
“Como é que sabe que estamos a sair da modernidade? Como poderia alguém saber isso, uma vez que coisas assim– começos e fins – não são conhecíveis pelos contemporâneos, pelas pessoas que as vivem?” (p. 97) – questiona Bauman de forma cristalina para enquadrar o seu entendimento quanto ao estatuto atual da modernidade. De facto, Bauman não só contesta a saída da modernidade do ponto de vista das condições epistémicas para a sua afirmação, como assevera que “em vez de estarmos a dizer adeus à modernidade, ainda esperamos colher os frutos das suas promessas” (p. 99). Pois, “a mais grandiosa das grandes narrativas modernas” – a sonhada administração humana dos seres humanos e da natureza –estará tão viva quanto antes (p. 100). Deste ponto de vista, terão sido as estratégias para as alcançar, e não as promessas da modernidade, a fracassar (p. 80). Poderíamos pensar que a diferença seria apenas de filigrana analítica, mas na verdade se tivermos em conta a divergência quanto ao estatuto atual da modernidade, torna-se evidente que Bauman constrói a sua leitura a partir de um “agora” que se altera, mas onde Bordoni vê ruturas radicais, o sociólogo polaco vê mudanças subtis e complexas que – aqui sim – são mais percetíveis através de uma filigrana analítica mais cuidada. Parte desse aparato analítico, apurado para melhor percecionar as transformações da modernidade, é o muito difundido conceito baumaniano de modernidade líquida, a que o autor recorreu para nomear as alterações da identidade moderna. A conceptualização baumaniana exprime a sua discordância da elaboração pós-moderna, pois, por um lado, (apesar de o próprio ter chegado a utilizar relutantemente o termo) “o advento daquilo a que equivocadamente se chamou de ‘pós-modernidade’ foi um evento interno dentro da história da era moderna” (p. 111), e por outro, do ponto de vista do conteúdo, concentrava-se apenas naquilo que desaparecia de cena sem curar de explorar o que entrava de novo. Por isso, Bauman “senti[u] necessidade de cunhar e utilizar um termo com o objectivo de expressar o que são essas novas realidades (…). Daí veio a escolha da metáfora da ‘liquidez’ ”(p. 112). É, assim, na modernidade líquida, onde pontifica a flexibilidade e a provisoriedade, que se desenrola a crise da modernidade (sólida).
Bauman e Bordoni podem discordar quanto à conceptualização do presente estado das coisas modernas, mas – ao completar o esboço do estado de crise – ambos partilham da mesma visão no que respeita a um dos elementos centrais da crise das relações interpessoais que também constitui uma das múltiplas faces da endémica situação de crise: a síndrome consumista – um formidável obstáculo nas palavras de Bauman (p. 188) e a apoteose da modernidade para Bordoni (p. 154). Ao mesmo tempo que a sociedade de massa moderna atravessa um processo de desmassificação que acarreta um despertar da autonomia e individualidade de cada um, assistimos também à quebra de vínculos sociais tradicionais, ao alarme da solidão e à multiplicação de relações sem compromissos baseadas apenas na gratificação que delas se extrai (conceito de “relações puras” cunhado por Giddens, p. 190). É a transposição para as relações humanas do modelo das relações consumidor-produto e dos ciclos de desejo, coisas e gratificação que se tornam num fator de adiaforização ou anestesia moral. De forma singular, com uma qualidade quase ficcional, quase literária, capaz de apreender a intimidade do comportamento individual e os não–ditos das dinâmicas coletivas, Bauman traduz a crise em crise das pessoas, dos sujeitos, dos indivíduos uns com os outros. E é por isso que adverte que não podemos olhar apenas para as facetas mais mediáticas do estado de crise: “não são só a política e a sobrevivência da comunidade que se encontram ameaçadas. A nossa intimidade interpessoal, e a satisfação e a realização que obtemos dela, também estão em perigo quando confrontadas com a pressão combinada de uma visão consumista do mundo e do ideal das ‘relações puras’” (p. 194). Na verdade, o perigo da dissipação para dentro do mito.
Referências Bibliográficas
Bordoni, C. (2012), La società insicura. Convivere con la paura nel mondo liquido, Roma, Aliberti.
Silva, F. C. da (2017), Obituary “Remembering Zygmunt Bauman (1925-2017). Análise Social, 222, lii (1.º), pp. 221-227.
Tabet, S. (2017), “Bibliographie exhaustive anglophone et francophone de Zygmunt Bauman”. Socio, 8. Disponível em http://journals.openedition.org/socio/2706 [consultado em 10-4-2018].
André, P. (2018), Recensão “Estado de Crise, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2016”. Análise Social, 227, liii (2.º), pp. 511-517. Patrícia André » patricia.andre@cedis.fd.unl.pt ». Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa » Campus de Campolide — 1099-032 Lisboa, Portugal.
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