A decadência espiritual no nosso tempo e a busca humana pela existência autêntica*
Anete Roese** e Adilson Schultz***
Resumen
O texto que segue apresenta uma reflexão sobre a degradação da dimensão espiritual da humanidade no mundo contemporâneo, a crise, a frustração do ser humano diante da situação que vive neste tempo e a vontade de uma existência autêntica. A reflexão se baseia em duas obras de dois autores importantes, de épocas diferentes: A situação espiritual do nosso tempo, de Karl Jaspers, e Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, de Edgar Morin. A partir destas duas obras e autores dialogaremos com outros grandes autores, como Paul Tillich, Viktor Frankl e Erich Fromm, que se ocuparam com a investigação da situação espiritual da humanidade.
*Artigo de reflexão. Pesquisa realizada com apoio do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, para o projeto “A situação espiritual do nosso tempo: crise e busca da existência responsável”.
** Doutorado em Teologia, Instituto Ecumênico de Pós Graduação em Teologia da Escola Superior de Teologia, EST, São Leopoldo/RS. Professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Correio eletrônico: anete.roese@gmail.com
*** Doutor em Teologia, Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo/RS. Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Professor no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Correio eletrônico: adilson.schultz@gmail.com
Fonte: Theologica Xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. Bogotá, Colombia. issn 0120-3649. “Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons“
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Massificação e ameaça ao ser autêntico
Jaspers já percebeu claramente como o avanço da técnica e da mecanização afetavam a existência. As novas invenções permitiram pensar outro modelo de produção e organização nas indústrias que a partir da serialização da produção podiam aumentar o rendimento dos trabalhadores. O curso do desenvolvimento era determinado pela racionalização da atividade e pela mecanização. A dimensão autêntica do ser humano, no entanto, sucumbe diante da massificação a que a mecanização conduz. Jaspers conclui que um ser humano deixa de ser ele próprio à medida que se identifica com uma massa anônima. A massa “isola o indivíduo, reduzindo-o a um átomo abandonado à sua avidez de existência”.25 A massa anônima, diz Jaspers, comporta um “carácter dissolvente” que leva o ser humano a agir segundo uma vontade que não é dele próprio. A massa não tolera autonomia. Cada qual deve se colocar a serviço da roda viva, do aparato que sustenta a massa. A massa anônima não tem caráter axiológico, mas funciona pela quantidade que representa, sendo uma grandeza vaga.
A tensão entre a organização técnica e o mundo da existência humana se evidencia no fato de os limites da organização da existência revelarem um antagonismo típico dos tempos modernos. A organização da massa e a massificação levaram à construção de um “aparato universal da existência” que destruirá o mundo humano. O seu presente sucumbe nas heranças do passado e nos projetos do futuro. A existência cotidiana, no entanto, exige algo do indivíduo, pois ela vem “nimbada pelo espírito de uma totalidade, de um microcosmos presente de modo sensível, por medíocre que seja”. 26 Mesmo descrente e submetido à máquina é neste mundo, é neste mesmo espaço que o ser humano deverá encontrar o rumo e realizar o seu ser-si-próprio. Segundo Jaspers,
…falta-nos uma rigorosa delimitação ao nível da totalidade que, inconscientemente, revele, antes de qualquer trabalho, o caminho de uma fecundidade coerente, susceptível de amadurecimento. De cem anos para cá se torna cada vez mais nítido que o homem dedicado à criação do espírito se vê remetido à sua solidão. 27
Para Frankl 28, no esforço e na luta pela existência significativa o ser humano se engaja em imitar os outros no que dizem e no que fazem, ações que geram conformismo e levam ao totalitarismo massificante, que suplantam a autenticidade própria de cada ser. A artificialidade e a superficialidade das relações revela o domínio do mecanismo também nelas e o caráter funcional das mesmas. As relações são disfarçadas, transvestidas de um aspecto conciliante, estão degeneradas. Tudo deve ter um ar de apaziguamento. Fala-se de muitas coisas e a contradição entre elas não causa mal-estar. Não há conexão entre a ética e a falta dela.
A tendência para a destruição do nicho doméstico, da vida familiar, cresce à medida que a absolutização da organização universal da existência aumenta. Este mundo original da família, a qual o ser humano busca sempre retornar como que por um “instinto invencível”, é aos poucos engolido pela dominação do modo de organização universal da existência. Segundo Jaspers, as “tendências dissolventes” apresentam uma moral excludente, não toleram nenhum modelo alternativo ao da classe hegemônica. É o mundo público, o mundo externo que rege a existência hodierna.29
A tendência dissolvente dos laços sociais se impõe com força total na sociedade industrializada e burocratizada, onde se constrói uma ideologia de relações a partir do mundo do trabalho. Trabalhadores e trabalhadoras devem se relacionar artificialmente, mantendo a falsa alegria sob a aparente simpatia. O processo de desumanização é crescente. Haja vista que os problemas no mundo do trabalho, a falta de motivação, as doenças e acidentes relacionados ao trabalho que se avolumam. Os “elementos da criatividade” 30 são banidos do mundo do trabalho. A autenticidade não é uma característica bem acolhida no mundo do trabalho contemporâneo.
As crueldades das quais os seres humanos são capazes tornaram-se flagrantes. Os estímulos gerados pela inquietação e pelo medo geram mais atividade; a submissão às exigências cresce para os que têm meia idade sob pena de serem excluídos; poupança, seguros de toda espécie, assistência social, a tudo recorrem os indivíduos ameaçados nestes tempos em que o “sentimento de insegurança vital”31 se aprofunda, mesmo diante das promessas de prolongamento da vida pela ciência. Agora, a angústia vital alcança o domínio físico. Afinal, quanto mais distante de compreender a sua significação neste mundo, o que resta é a fuga para a doença que servirá de proteção nestas circunstâncias.
A dinâmica da existência, com sua organização e mecanismos, permite momentos de esquecimento, de apaziguamento e de organização que dão o sentimento de co-pertencimento e segurança. A organização, no entanto, não é capaz de eliminar a angústia, antes, a organização total da existência precipita a inescapável angústia vital. A angústia que escapa mesmo diante da organização só pode ser
…domada pela angústia da existência como encontro do ser-si-próprio com o transcendente, a implicar um impulso religioso ou filosófico. A angústia vital cresce necessariamente quando o elemento transcendental da existência se acha neutralizado. 32
A origem espiritual da decadência humana
A decadência tem, segundo Jaspers, uma origem espiritual. A noção de autoridade subjacente aos vínculos humanos, base da confiança e que dava ao indivíduo a consciência do ser se desfez. A autoridade perdeu seu terreno ante a crítica no século XIX, de onde advém o cinismo característico da existência moderna, cuja qualidade maior é o silêncio diante da vulgaridade que se apresenta por todos os lados. A severidade das obrigações desapareceu e o humanismo perdeu sua humanitas justificando “a partir de ideais exangues, o que há de mais esporádico e espúrio”.33 Hoje “a realização no fracasso pode ser tão real como no êxito”.34
Para Morin, o humanismo ficou acanhado e não conseguiu se contrapor ao individualismo ocidental reinante e que afeta profundamente as relações em todos os níveis, alastrando o egocentrismo, a autojustificação, o interesse pessoal. O humanismo não conseguiu implantar valores como a colaboração, a reciprocidade, a mutualidade, a cooperação e a interdependência e a codependência – estes últimos no sentido de desconstrução da noção de que o ser humano é indivíduo independente dos outros seres humanos e seres vivos em geral.
Resiste naqueles valores individualistas difundidos até a alma das sociedades ocidentais o problema da incompreensão generalizada que separa os seres humanos dos seus grupos de convívio como as famílias, no seu grupo de trabalho, que afeta os valores que educadores deveriam ensinar, que impossibilita que mais pessoas se associem em cooperativas, sindicatos de forma a colaborarem entre si. Reside aí, segundo Morin, a “exasperação das incompreensões” e a “exasperação dos conflitos”.35
Para Edgar Morin, trata-se de fato de uma crise da alma, do espírito. Esta crise imposta pela organização material da existência “gera um apelo ao Oriente interior e vai procurar no Oriente exterior seus remédios. Por que ocorre esse apelo à ioga, ao budismo, essa busca na Nova Era, como se a civilização material criasse um vazio espiritual e um divórcio entre corpo e espírito…” 36 O teólogo Paul Tillich 37 interpretou os diferentes tipos de ansiedade enfrentados pela civilização ocidental ao longo de sua história como grandes períodos de ansiedade, e identificou três tempos e três tipos de ansiedade: um na civilização antiga, outro na Idade média e outro no período moderno. São, para o autor, ansiedades em que o não-ser ameaça o ser.
Segundo Tillich, no final da civilização antiga predomina a ansiedade ôntica, no final da Idade Média predomina a ansiedade moral, e no período moderno, o que mais nos interessa aqui, predomina a ansiedade da vacuidade e da insignificação. Neste período, a auto-afirmação espiritual do ser é ameaçada pelo não-ser de modo relativo no caso da vacuidade e de modo absoluto no caso da insignificação.
Nesta era perdeu-se o genuíno “sentimento de Deus”, a “preocupação suprema”, segundo Tillich. A humanidade está numa profunda depressão espiritual, uma frustração existencial – na qual tenta encontrar novos significados, empenhada numa nova busca de referenciais de valor e sentido e que apontam para o sentido da vida. A pior ameaça é a ameaça de ser lançado ao nada, a ameaça do não-ser. Segundo Tillich,
Vacuidade e perda de significação são expressões da ameaça do não-ser à vida espiritual. Esta ameaça está implícita na finidade do homem e realizada no extravio do homem. Pode ser descrita em termos de dúvida, sua função criadora e destruidora na vida espiritual do homem. O homem é capaz de perguntar porque está separado de embora participando em, daquilo sobre o que está perguntando. Em toda pergunta está implicado um elemento de dúvida, a certeza de não haver. 38
Viktor Frankl 39 compreende esta situação como um adoecimento espiritual da humanidade, não se tratando mais de um fenômeno individual ou local. Entre as razões deste adoecimento espiritual estaria a falta de sentido, o vazio existencial causado pelo fim das tradições que antes davam suporte às condutas humanas, dos valores, da consciência da capacidade de autotranscendência – própria do ser humano, considerando sua necessidade de encontro com o outro e de ir além de si. Para Forghieri,
…a consciência de si e o autoconhecimento implicam a autotranscendência; esta é a capacidade do ser humano transcender a situação imediata, ou, em outras palavras, a capacidade de ultrapassar o momento concretamente presente, aqui e agora, o espaço e o tempo objetivos. Pela autotranscendência a pessoa traz o passado e o futuro para o instante atual de sua existência e se reconhece como sujeito responsável por suas decisões e atos. 40
Ao se referir ao adoecimento espiritual do nosso tempo, Frankl caracteriza –o através dos sintomas da adição–o uso desmedido de drogas lícitas e ilícitas que aponta para uma via de desespero ante a necessidade de sobreviver neste mundo recorrendo a artifícios que substituem brevemente esta realidade por outra; da agressão, que não apenas se explica pela violência em si, mas como uma manifestação de revolta diante de um mundo excludente para a maioria; da depressão, que não deixa de ser uma recusa na participação de determinada realidade; da banalização da sexualidade, em relação à qual pode-se apontar um paradoxo impressionante no tempo atual, pois justamente a época na qual mais se fala de sexo e de prazer sexual mais se toma drogas para ter prazer e potência e em que mais se verifica ausência de prazer sexual em índices significativos. Ou seja, é necessário tomar remédios para obter prazer.
Neste tempo “atual”, considera Jaspers, o ser humano encontra-se “desenraizado”. O caminho transcorrido até aqui parece ter sido misterioso e oculto para ele mesmo, ainda que vivesse “na imediata consciência da unidade da existência e da consciência dela”. Hoje, segue Jaspers, queremos ir ao “sedimento da realidade” na qual vivemos e por esta razão “perdemos pé”, uma vez que as estruturas da unidade estão arruinadas e assim somente discernimos de um lado a existência ou de outro a consciência dela. 41
Para Jaspers a consciência deste movimento no qual a humanidade entrou contempla uma dualidade que consiste no fato de que, dado que o mundo é indefinido, o ser humano em vez de sua esperança matar a sede na transcendência, apega-se no mundo capaz de ser transformado, com a crença numa plenitude terrestre. Resulta que o indivíduo se depara com os limites dos efeitos de seus esforços diante do confronto com as possibilidades concebidas de forma muito abstrata.
Ademais, acrescentando o fato de que “o devir das coisas do mundo em que ele parece insignificante como força transformadora da totalidade” 42 é responsável pela criação de um “sentimento de impotência”, ou seja, este ser humano que se julgava capaz de dominar o mundo vê-se cativo do movimento e do rumo das coisas.
Morin entende que estas contradições da modernidade chegaram a um “grau paroxístico”. Segundo este autor contemporâneo, “tudo se passa como se houvesse uma agonia, no sentido original da palavra, ou seja, uma luta entre as forças da vida e as forças da morte”. 43 Com Morin podemos entender que a crise, seus sintomas e seu sentido, apontados através dos autores acima citados, se estende até os dias de hoje, e, cremos, se apresenta de modo mais agudo e revela a decadência espiritual do ser humano e a sua dificuldade na manutenção de valores e sistemas historicamente aprimorados pela própria sociedade humana.
Organização da existência e reivindicação de uma existência autêntica
Com o processo de desmitização protagonizado pela ciência o mundo se dessacraliza e qualquer lei de liberdade se perde diante do estabelecimento da organização, da cooperatividade e da obediência. Vontade alguma se mostra eficaz para o restabelecimento de uma axiomática autêntica; a consciência se perdeu nesta era, e a objetividade tornou-se ambígua, o autêntico transfigurouse naquilo que se perdeu, a substância revela-se perplexidade e a realidade “um baile de máscaras”, diz Jaspers. E “ante o problema de saber o que restará ainda hoje em dia, a resposta a formular é apenas a consciência do perigo e da perda como sentimento de uma crise radical”. 44
O indivíduo sempre corre o perigo de se perder na massa anônima – que no mundo contemporâneo é absolutizada como entidade que poderia dar resposta aos desejos e determinar o sentido da vida do ser humano. No entendimento da abordagem fenomenológica, no entanto, o indivíduo como pessoa, na qualidade de sua existência transcendental, está além de ser apenas membro de uma massa, pois comporta uma autenticidade em sua humanidade, cuja dimensão deve cumprir.
Para Jaspers, a constante invocação das massas e sua absolutização tem o intuito de sustentar atividades vazias de sentido, de não enfrentar a si próprio, não assumir as responsabilidades que conclamam o indivíduo a assumir o compromisso da promoção humana.
Para que outra forma de organização da existência seja viável é necessário paz e, para tal, tomada de decisões e compromisso com a comunidade. A existência comunitária exige que o indivíduo assuma compromissos. Estes podem convocar o indivíduo a que assuma o ser si-próprio ou pode exigir que este ser si-próprio se dissolva. No último caso o indivíduo será reduzido a “um ilimitado ajustamento aplainante no plano da cooperação genérica”. 45
Devemos considerar, no entanto, que o ser humano nunca é completamente tragado pela organização da existência na sua individualidade. Ele se revolta ao sentir-se sufocado e enredado pelas exigências deste padrão da organização da existência. Há no ser humano “uma reivindicação da existência como apelo do transcendente, que nele se acha latente”. 46 O ser humano ainda é um ser livre que busca a realização do seu ser-si-próprio e é também um ser coexistencial.
É na liberdade do indivíduo que o limite deste modelo de organização da existência pode ser encontrado, pois é a ele que “cabe realizar, por si próprio, o que ninguém lhe poderá subtrair, no caso do homem optar pela sua própria humanidade”. 47 Sujeitar-se é desconectar-se do desejo próprio e original da verdade profunda que diz respeito à integridade do ser. É romper com o sopro original que deu e dá vida a cada ser.
Segundo Jaspers, para ser ele próprio o indivíduo se arrisca em nome da sua “vontade de assumir o próprio destino a fim de alcançar o ser”. 48 Se, no entanto, o prazer de lograr algo pelo ato de criação, por onde o ser se realiza na sua autenticidade, fica embotado a inesperada satisfação própria do ser humano já não pode se realizar. Se “tudo vem desprovido da cor de uma criação pessoal”, 49 a impossibilidade de criar por si leva, então, à frustração existencial, o sentido de se ver refletido na criação se perde.
No desespero de tomar as rédeas do próprio destino, de assumir seu ser o indivíduo assume riscos. A ambição pode se apresentar como via de realização do ser-si-próprio, mas é ela mesma uma dissimulada força que em meio ao desespero se apresenta como via de realização do transcendente. Assim se apresentam as drogas que conduzem, momentaneamente, a outro mundo longe da realidade concreta e insuportável do presente, e assim servem como via de fuga desta organização mecânica da existência. Assim também se apresentam o erotismo, o esporte e o lazer, as diversões de massa e, no cotidiano atual, as redes sociais.
O problema consiste em que a autenticidade do ser humano está profundamente ameaçada neste momento pelo domínio avassalador da organização mecânica do aparato da existência e seus subterfúgios. Fromm considera que a ordem social pode usufruir do ser humano para “quase” toda obra. Exatamente “quase” lembra Fromm, pois é necessário tomar em conta que há consequências para a imposição de certas condições.
O desempenho de ações requer estímulo e prazer, sem os quais o desempenho é nulo ou muito baixo. Ou seja, há que se considerar que o ser humano não é completamente dominável, pois ele reage, quando não completamente desamparado, às imposições que tentam submetê-lo e tirar-lhe a humanidade. Ele “tenderá a ser violento se a vida for demasiado enfadonha; tenderá a perder toda a sua capacidade criadora se o transformarmos numa máquina”. 50 O ser humano protestará “contra condições que tornam demasiado drástico ou insuportável o desequilíbrio entre a ordem social e suas necessidades humanas”. 51 O caminho de volta à autenticidade, ou à originalidade do ser humano, a superação, no redemoinho da crise, pode ser encontrada por aquele que
…busca o caminho dos seus sedimentos originais, terá que passar através do que se perdeu a fim de incorporar pela memória, medir as proporções do caos para chegar a uma decisão sobre si próprio e fazer a experiência do disfarce a partir de que logre alcançar a autenticidade. 52
Segundo Jaspers, o ser humano encontra a sua realização no campo político, cujo meio é a organização da existência, por força da sua vontade de totalidade. Além disso, o ser humano encontra a sua realização por meio da criação espiritual “pela qual acede à consciência da sua substância”. 53
Por outro lado, o engajamento excessivo na organização da existência levou o ser humano a afastar-se da sua capacidade de autocriação livre e consequentemente da consciência das suas origens, do seu destino e da sua verdadeira humanidade. O caminho político e o da criação espiritual são os campos onde o ser humano pode resgatar a substância destas perdas. Mas não resgatará em apenas um dos campos, porque isoladamente nenhum deles é capaz de oferecer a totalidade do que o ser humano busca.
Urge, pois, segundo Jaspers, um “regresso às origens, ao ser humano” 54 e o caminho é aquele. Nesta perspectiva, o ser humano será capaz de relativizar a organização exterior da existência centrada no pensamento utilitário que ora domina a existência humana de modo danoso. A verdade instituinte da comunidade envolve uma fé histórica, e esta jamais será universal. Há uma verdade que alcança a todos de modo igual que é a de um juízo razoável, “mas a verdade do que seja o próprio homem, e que a sua fé lhe manifesta, separa os homens”. 55
O ser humano, segundo Jaspers, na situação espiritual do nosso tempo, na tentativa de se tornar ele próprio se esquiva e renuncia a forças que tentam impor uma fé totalitária. O destino do espírito é a sua manifestação na polaridade entre a subordinação à existência e espontaneidade original. Apaga-se na mera dependência de uma irrealidade utópica; pode constituir a ideia fulcral das estruturas da existência, como pode suceder que ela morra, e o que antes fora espírito subsistirá apenas, residualmente, como invólucro, máscara ou simples sensação.
Considerações finais
O indivíduo “paira na oca liberdade do nada” 56, pois conta apenas consigo próprio, porque já não encontra apoio nos outros, e não extrai a sua liberdade da “substância que tudo penetra”57 e na qual já não se percebe imergido. A situação do tempo na qual a humanidade se encontra exige, para ser contornada, um esforço extra humano. A noção da impossibilidade desta empreitada pode levar a humanidade a esforços no sentido de remediar ou de se organizar somente para dar respostas para o presente imediato e a limitar seu pensamento a fim de não se impor mais sofrimentos.
Para Jaspers, o ser humano está desamparado, desenraizado, separado, ameaçado, disperso, não tem comprometimento com o mundo no qual está inserido, perdeu a noção de autoridade e aseveridade das obrigações, mas precisa correr o risco a fim de poder reencontrar-se a si próprio.
Os sintomas do adoecimento espiritual, que vão desde doenças como a depressão, até o uso desmedido de drogas lícitas e ilícitas e a violência, segundo Frankl, cujas causas seriam a frustração da vontade de sentido, a vacuidade, a perda de significação e a perda do genuíno sentimento de Deus, e da preocupação suprema, segundo Tillich, evidenciam a insatisfação do ser humano diante do seu modo de organizar a existência. A busca da superação deste estado está simultaneamente presente neste adoecimento como sinal na frustração e na constante vontade de criar outros modos de vida.
O ser humano como ser de transcendência é capaz de superar a cada momento a sua situação. A tensão entre a existência e o ser-si-próprio como ser autêntico é a própria busca do ser humano pela sua qualidade humana. Abrir mão de lutar seria perder a “referência cósmica”, parar de criar, de produzir de cuidar, de preservar e apenas se submeter a fim de sobreviver e satisfazer as necessidades básicas seria deixar o espírito se esvair e não crer mais em si mesmo.
Perder a referência cósmica equivale a perder o lugar no mundo, pois o ser humano sendo um ser de transcendência é responsável, busca sentido, tem uma capacidade espiritual que permite pensar o seu lugar neste mundo. No atual momento a organização exterior da existência corrói a atividade espiritual da humanidade.
Morin, apesar de todo o argumento, não perdeu completamente a esperança no ser humano, embora sua esperança seja quase a expectativa de um milagre. Ele crê que a metamorfose está em processo. Mas alerta que ela não está determinada. Incertezas, possibilidades de regressão e destruição não podem ser descartadas neste processo. O autor guarda uma expectativa com relação a uma nova consciência planetária –que poderia levar a uma nova civilização– e que faria uma reforma, tendo em vista a preocupação ecológica e a busca da qualidade de vida.
Morin aposta na possibilidade de que o improvável possa acontecer, ainda que a probabilidade seja a de uma catástrofe. Não há determinismo com relação ao futuro. Aliás, o passado já mostrou a capacidade de regeneração do ser humano, quando diante de graves crises como na segunda guerra mundial. Segundo o autor, “atitudes autotransformadoras despertam em caso de crise quando as coisas rigidificadas se deslocam diante dos perigos”. 58
Segundo Morin, o mundo abalado pela agressividade do quadrimotor destruidor formado pela ciência moderna e hegemônica, a técnica, a indústria e a ideologia do lucro necessita de uma mudança ao nível de uma metamorfose que parece estar fora do nosso alcance. No entanto, guardamos também esperanças em relação ao ser humano, e esperanças positivas. A esperança neste caso não é impossível, mas ela é improvável, diz Morin. Mas o improvável é possível. Além disso, é necessário contar com “o apelo à vontade diante da grandeza do desafio”. 59
Morin se refere à possibilidade de uma reação positiva com base no fenômeno do mundo físico onde um feedback positivo sempre leva à desintegração ou explosão. No mundo humano, ao contrário, se antigas estruturas cristalizadas se desintegram o feedback positivo pode levar à regeneração, ao surgimento de novas forças capazes de transformação. Portanto, a ideia de uma decadência ou de um abismo não significa por si um fim, mas a possibilidade de uma regeneração.
Morin indica quatro vias necessárias para uma reforma da humanidade: a primeira trata da reforma da organização social; a via da reforma da educação, a fim de que a humanidade possa evoluir espiritualmente; a via da reforma da vida e a última – a via da reforma ética. Morin não explica especificamente cada via. No entanto, se tomamos em conta a reflexão de Jaspers, em quem eventualmente Morin se baseia, haja visto a semelhança de muitos conteúdos deste com aquele autor, podemos pensar que todas as vias convergem para o que Jaspers formula em termos da organização da existência nos padrões da sociedade mecanizada e da necessidade de superação das consequências deste modo de organização da vida como um todo.
Nenhuma das reformas é possível sem uma reforma ainda mais profunda. Para uma mudança em níveis mundiais seria necessário, segundo Morin, acontecer uma “reforma das pessoas”, só esta reforma seria capaz de levar à compreensão mútua tão necessária para uma sociedade mundializada, uma “civilização mundializada” baseada em novos valores. Trata-se de uma “política da humanidade e de uma política de civilização” que toma em conta a necessidade de uma “reforma interior dos espíritos e das pessoas”. 60
Nas palavras de Jaspers, se trata da necessidade de um regresso às origens humanas, ou seja, às origens do potencial mais originalmente humano que é a sua capacidade espiritual e de transcendência. A mudança deveria acontecer, portanto, no nível do espírito humano, na dimensão psíquica, na interioridade humana e no nível do pensamento.
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Pie de página
25Ibid., 59
26Ibid., 63
27Ibid., 196
28Frankl, Sede de sentido
29Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 87-88
30Fromm, A revolução da esperança, 49
31Ibid., 95
32Ibid., 95
33Ibid., 127
34Ibid., 153
35Morin, Rumo ao abismo?, 8
36Ibid., 2
37Tillich, A coragem de ser
38Ibid., 37
39Frankl, A presença ignorada de Deus
40Forghieri, Psicologia fenomenológica. Fundamentos, método epesquisas, 32
41Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 10
42Ibid., 12
43Morin, Rumo ao abismo?, 28
44Ibid., 128
45Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 11
46Ibid., 6
47Ibid., 92
48Ibid., 65
49Ibid., 69
50Fromm, A revolução da esperança, 7
51Ibid., 79
52Ibid., 129
53Ibid., 12
54Ibid., 129
55Ibid., 130
56Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 225
57Ibid., 225
58Morin, Rumo ao abismo?, 32
59Ibid., 93
60Ibid., 88-89.
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Bibliografia
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