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[1] A decadência espiritual no nosso tempo (Roese e Schultz)

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A decadência espiritual no nosso tempo e a busca humana pela existência autêntica*

Anete Roese** e Adilson Schultz***

Resumen
O texto que segue apresenta uma reflexão sobre a degradação da dimensão espiritual da humanidade no mundo contemporâneo, a crise, a frustração do ser humano diante da situação que vive neste tempo e a vontade de uma existência autêntica. A reflexão se baseia em duas obras de dois autores importantes, de épocas diferentes: A situação espiritual do nosso tempo, de Karl Jaspers, e Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, de Edgar Morin. A partir destas duas obras e autores dialogaremos com outros grandes autores, como Paul Tillich, Viktor Frankl e Erich Fromm, que se ocuparam com a investigação da situação espiritual da humanidade.

*Artigo de reflexão. Pesquisa realizada com apoio do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, para o projeto “A situação espiritual do nosso tempo: crise e busca da existência responsável”.
** Doutorado em Teologia, Instituto Ecumênico de Pós Graduação em Teologia da Escola Superior de Teologia, EST, São Leopoldo/RS. Professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Correio eletrônico: anete.roese@gmail.com
*** Doutor em Teologia, Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo/RS. Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Professor no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Correio eletrônico: adilson.schultz@gmail.com

Fonte: Theologica Xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. Bogotá, Colombia. issn 0120-3649. “Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons

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Introdução

A decadência espiritual no nosso tempo pode ser identificada em três instâncias relativas ao modo de vida do ser humano na sua interação com o meio, com o próximo e consigo mesmo. A relação do ser humano com o meio onde vive está degradada, o poder de decisão e ação sobre o mundo foi transferido às máquinas e o distanciamento da realidade já impede que se veja implicado no mundo que o cerca. A relação do ser humano com seu semelhante está igualmente deteriorada, e a violência é um dos sintomas de que este mundo humano está em profunda crise.

Da mesma forma uma crise profunda se abate sobre o ser humano e o seu mundo próprio, levando-o a uma situação de sofrimento psíquico e espiritual de grandes proporções, que se manifesta também no uso desmedido de drogas lícitas e ilícitas. Trata-se de uma situação complexa, que levou a uma decadência espiritual de graves dimensões e que na sequência será analisada.

Para a caracterização desta era na qual vivemos lançaremos mão de um livro escrito por Karl Jaspers nos anos 1930, publicado no Brasil em 1968, intitulado A situação espiritual do nosso tempo. Neste estudo Jaspers faz uma leitura da situação da humanidade desde o seu contexto que é muito profunda e apropriada para que possamos compor uma visão ampla o suficiente para uma compreensão da situação do sofrimento da humanidade no tempo atual.

Também laçaremos mão dos escritos do filósofo e teólogo Paul Tillich que aponta a modernidade como era da ansiedade espiritual. Recorreremos também ao livro de Morin (2011), cujo título instigante pergunta: Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. O livro de Morin se volta para o contexto moderno para verificar as manifestações singulares de uma época como a modernidade, para depois pensar sobre o tempo atual. Segundo Edgar Morin, “o século XXI assistirá ao prosseguimento dos processos culturais concorrentes, antagônicos e, por vezes, complementares que se manifestaram no fim do século XX”.1

As contextualizações das diferentes eras nos ajudarão a compreender os modos de vida criados em épocas anteriores e que tem reflexos sobre o tempo atual. São eras que se prorrogam, se intensificam, apresentam superações e consequências, causam sofrimentos diversos, sobretudo uma frustração existencial e espiritual que pode ser identificada na civilização ocidental no atual momento. É imperativo nesta época, portanto, lançar o olhar para o passado, um passado capaz de nos dar um quadro relativamente considerável para podermos compreender o contexto que nos circunda atualmente.

Esta questão é especialmente importante considerando que estamos no início de um século e sobre este século não podemos tecer considerações suficientemente aprofundadas se não considerarmos o século XX que há pouco nos antecedeu e que empreendeu duas guerras mundiais, uma bomba atômica e epidemias como o HIV que marcaram e marcam várias gerações desta humanidade ainda vivas. Para compreender a decadência espiritual que afeta a humanidade hoje é necessário, pois, caracterizar os tempos e contextos nos quais a humanidade desenvolve os seus modos de vida.

Antes de uma caracterização do contexto é importante dizer que a compreensão da questão espiritual aqui segue o proposto na abordagem fenomenológica. Ou seja, temos a convicção de que o ser humano contempla, além das dimensões física e psíquica, também uma dimensão espiritual.

A característica da dimensão espiritual é a potencialidade e capacidade moral, cujas demandas são a liberdade e a responsabilidade. A dimensão espiritual é o âmbito da capacidade de decisão, reflexão e avaliação, relacionadas aos atos de compreensão, reflexão, avaliação, decisão, do pensamento. À dimensão psíquica competem os atos como as reações, os instintos, impulsos, como o medo, os desejos, as emoções. Da dimensão física temos consciência em razão do tato– que é o que nos dá a possibilidade de perceber os limites do corpo e a orientação no espaço.

A fenomenologia identificará os atos de controle no campo espiritual, e se diferem dos atos do campo psíquico ou corpóreo. Estes últimos são registrados e só mediante este registro, de um sentimento, por exemplo, há uma reação. Há, pois, uma capacidade ou uma dimensão capaz do controle da psique e do corpo e esta dimensão é a espiritual. Não se trata da antiga divisão entre corpo e alma, pois a fenomenologia parte da análise dos atos, e “pelo registro dos atos podemos chegar à estrutura do ser humano”.2

Os atos permitem que se reconheça a existência da alma, e que a mesma pode ser dividida em duas dimensões: uma psíquica e uma espiritual. Estas duas e a dimensão corpórea estão absolutamente integradas no ser humano, sendo que em algumas pessoas uma das dimensões pode estar mais desenvolvida ou menos desenvolvida. A consciência é o ponto de convergência das operações dado que ela não tem caráter físico, psíquico ou espiritual, “é a dimensão com a qual nós registramos os atos”.3 Esta questão será elucidada ao longo do texto à medida do desenvolvimento da questão que o texto se propõe analisar, que trata da decadência espiritual do nosso tempo e da busca por uma existência autêntica.

O tempo moderno e atual

Morin 4 destaca o desenvolvimento econômico, mercantil e capitalista, bem como a ideia de uma era planetária com a economia de trocas e a dominação do mundo pelo oeste da Europa como características dos tempos modernos; o surgimento de Estados-nação (Portugal, Espanha, Inglaterra, França) e, depois, o surgimento do individualismo também devem ser acrescentados. Não há, portanto, uma data ou acontecimento específico que marca o surgimento da era moderna.

O Renascimento vai gerar a problematização de tudo: a natureza, Deus, o ser humano e a realidade. O pensamento moderno, diz Morin, “é marcado por uma grande disjunção, muito bem formulada por Descartes, entre dois domínios que se tornaram incomensuráveis, o do espírito, do sujeito, da filosofia; e o da matéria, da extensão do corpo, da ciência, da realidade empírica”.5

A modernidade é marcada por princípios antagônicos e complementares. A ciência, por exemplo, depende da verificação, do conflito de ideias e do antagonismo com outros sistemas de pensamento tal como a religião. Posteriormente, a técnica ganha importância no cenário mundial, se associa à ciência e produz o conceito de tecnociência no século XX.

Três grandes mitos caracterizam a modernidade: o mito do progresso; o mito do domínio do universo e o mito da felicidade, este difundido pela mídia e vendido como um produto que todo indivíduo poder obter.6 Ainda que a ideia do domínio do universo esteja relativamente em crise, afetado pela crise ambiental e pelo apelo ecológico, o mito do progresso se atualizou e hoje é difundido com a ideia do “desenvolvimento”; e o mito da felicidade também se atualizou por meio do mito da beleza e da juventude.

A era moderna revela uma imensa capacidade de invenção, criação e desenvolvimento, sobretudo no século XX. Isso se verifica no campo da ciência – dimensão predominante da modernidade, no desenvolvimento da técnica, da economia e do capitalismo. Há que se observar, no entanto, que simultaneamente à capacidade inventiva, a modernidade também é a era dos grandes contrastes e destruições. Há, por um lado, aprofundamento da miséria e, por outro, um crescimento do desenvolvimento de instrumentos que facilitam e que dinamizam a vida humana.

A própria ciência tanto será responsável por grandes descobertas na medicina com suas tecnologias de diagnóstico e de cura de doenças, quanto pelo desenvolvimento de tecnologias de morte. O desenvolvimento técnico colocou a humanidade diante de um dilema: a técnica tanto facilitou a vida cotidiana da humanidade, quanto submeteu os trabalhadores a lógicas produtivas padronizadas, repetitivas, que, junto com o furor do desejo de lucro produzem escravidão e submissão. A técnica, a lógica e a tecnologia levaram a uma submissão da sociedade à máquina artificial. Segundo Morin, “a crise da modernidade surgiu a partir do momento em que a problematização, nascida da modernidade e que se voltava para Deus, a natureza, o exterior, se voltou, então, para a própria modernidade”.7 A crise está relacionada com o paradoxo de que a modernidade8 produz o bem estar e o mal-estar, os extremos, as promessas excessivas de felicidade, cura e as pretensões da ciência de ocupar o lugar de Deus e da religião, propondo a salvação e explicando a origem e o fim do mundo.

Segundo Jaspers, o “problema da situação do tempo” começa a se colocar a partir da guerra, certamente a primeira Guerra Mundial. Antes o tema não era senão uma preocupação de poucos. No entanto, “agora” se torna uma problemática de todos, diz, ainda que continue sendo inesgotável, impreciso e fugidio. Até então, o ser humano estava “preso à terra e cativo do céu”9, instalado no seu lugar sem buscar transformações.

Os sinais da situação do nosso tempo e a fisionomia de uma crise

Para Jaspers, o ser humano se perdeu na pura organização da existência, da organização exterior do mundo a partir de um sentimento de utilidade. E esta organização exterior da existência é a ruína da atividade espiritual. A humanidade está como que perdida em meio à avassaladora oferta de sentidos.

O turbilhão da existência moderna subtrai ao homem uma visão límpida do que, na realidade, acontece. Vagamos na existência como num mar sem que possamos escapar-lhe ou espraiar-nos numa margem firme a permitir-nos uma perspectiva nítida da totalidade. O redemoinho só permite abranger o que, por ele arrastados, logramos. 10

Segundo o autor, há uma “suposta evidência generalizada” que leva a humanidade a associar a existência com assistência material, com base numa produção racional e técnica, sobretudo para garantir a sobrevivência das massas. Ademais, o indivíduo em meio ao turbilhão, não está conseguindo se esquivar do “maquinismo” –supostamente necessário– típico do desenvolvimento econômico. Não há como negar que a organização da existência está alterada, “ameaça ruir e afigura-se irrealizável”, diz Jaspers.11

A crítica da razão instrumental (Escola de Frankfurt), segundo Morin, é justamente a crítica deste modelo que se debruça apenas sobre a eficiência dos meios, ignorando os fins. Este tipo de lógica é a que leva aos campos de concentração, diz. A crise que afeta a lógica da modernidade afeta os mitos que lhe são mais caros –justamente a ideia do progresso– porque sinaliza os limites da relação sociedade e natureza quando esta última é considerada passiva e é dominada e explorada; afeta o mito da felicidade porque o “paraíso” prometido por meio da ciência, da técnica, do desenvolvimento não chegou para a maioria da humanidade; e o mito da dominação do mundo é afetado porque este intuito de dominação levou à dizimação de povos e a desastres naturais incalculáveis.

No mito da felicidade, acreditamos, reside um dos pontos mais sensíveis da crise da modernidade e que atinge o abismo no processo de mundialização. Este mito moderno da felicidade levou a uma busca desenfreada e a uma obrigação de um bem estar constante. O indivíduo precisa mostrar que está bem, afinal o mercado capitalista moderno é regido por uma ideologia que perenemente insinua que é capaz de criar e oferecer todos os produtos naturais e artificiais que conduzem à felicidade. Morin cita várias evidências da crise do mito da felicidade (menciona fadiga, abuso de psicotrópicos, drogas lícitas, etc.).

A cidade radiosa transforma-se em cidade tentacular com sua vida racionalizada, suas poluições, seu estresse; por meio da destruição das solidariedades tradicionais, e seu individualismo gera solidão e tristeza. Acreditou-se poder edificar uma civilização de segurança, mas percebe-se no presente que, longe de eliminar o risco, ela produz novos.12

A crise do mito da felicidade explica em parte o que, cremos, levou a um dos fundamentos de uma profunda crise de sentido. A falsa promessa de felicidade suprema, de uma espécie de paraíso ou de salvação que viria com o desenvolvimento, já não era mais o discurso religioso, mas da ciência moderna. Ora, o modelo de desenvolvimento não trouxe a prometida felicidade, antes revelou tantas contradições que a humanidade é capaz de produzir que a crise existencial se tornou inevitável diante da constatação da impossibilidade e da irrealidade da promessa.

Jaspers identifica esta problemática e a coloca sob o conceito da alegria e do contentamento. No contexto da organização universal, onde a massa humana é coagida a incorporar uma existência padronizada, a alegria é desmantelada com a fragmentação da totalidade em vista das produções parciais, com o trabalho em série. Não há mais continuidade de tarefas ou ideias.

O mundo técnico com seus mecanismos e suas urgências impõe outra forma de existência onde a alegria é relativizada. Em vez de uma profissão realizada humanamente, surge o fenômeno da alegria no trabalho pelo rendimento técnico a separar o ser-si-próprio13 do ser humano como simples dinamismo funcional, o que, em muitas atividades, arruína irremediavelmente o próprio rendimento.

Segundo Jaspers, inclusive a atividade espiritual está submetida à absolutização dos organismos da existência, tais como os poderes materiais e as questões econômicas tomando-as como forças autênticas, se coloca a serviço das mesmas, reúne os pressupostos que justificam os eventos do mundo. O espírito não mais reconhece a sua originalidade pessoal. “O que, durante milênios, foi o mundo do homem parece, hoje, desabar.”14 O modelo moderno de organização da existência se pauta em formas mecânicas de assistência a estruturas a serviço de uma massa anônima. O que está em jogo parece ser apenas o meio em si e não o fim, nem mesmo algum sentido essencial.

Acima argumentamos que os mitos se atualizaram e hoje funcionam como mito da beleza, da juventude e do desenvolvimento. São fenômenos que revelam o mecanismo sobre o qual a humanidade pauta a sua existência no mundo atual e que contrastam com tantos sofrimentos de caráter espiritual. A questão consiste em que o ser humano não mais encontra contentamento neste modo de existência, pois carece profundamente daquilo que lhe sustenta o valor e a dignidade.

Para Jaspers, o ser humano pode estar prestes a sacrificar o ser placentário no qual nasce para a sua própria autenticidade. Eis porque, em geral, existe a consciência do caos quanto aos valores fundamentais. Tudo vem a ser posto em dúvida; tudo se acha ameaçado na sua substância. Os sinais da crise se evidenciam ao se buscar as razões profundas da mesma, que também são encontradas na crise do Estado, na crise da cultura, na crise do ser humano. Segundo Jaspers, quando o governo não alcança uma formação substancial da vontade coletiva o “sentimento consensual vacila e logo tudo cambaleia”. A crise da cultura pode ser revelada por meio da desagregação de tudo o que emana do espírito, e a crise do ser humanopode ser verificada quando a organização absoluta da massa anônima alcança os seus limites, a consequência é um estremecimento de tudo em volta.

Jaspers descreve a fisionomia da crise como a de “uma inteira falta de confiança”. O fato de termos ancoradouro nas ciências positivas, em convenções sólidas e no direito formal não levou a atitudes confiantes, antes apenas indica uma capacidade de cálculo. A existência parece basear-se unicamente em interesses e, consequentemente, “a consciência da substancialidade do todo acaba por apagar-se”. A confiança já não é um valor que existe no campo da totalidade, desfaz-se em simulacros, apenas em espaços restritos ela é praticável.

Tudo é atingido pela crise, inabarcável em todos os seus elementos e incompreensível do ponto de vista das suas causas, de efeitos ineutralizáveis, que nos compete assumir como parte integrante do nosso destino, sofrer e superar. Enuncia-se, sob formas bem diversas, o carácter fugidio desta crise. 15

No momento presente temos sinais claros de crise nas instâncias governamentais, culturais e humanas sinalizada nos protestos ao redor do mundo presentes nas manifestações de jovens que ocupam as ruas contra os governos e modelos de política em países árabes, na Europa e na América Latina. Os protestos são contra a corrupção na política, contra os governos autoritários, a falta de investimentos em saúde e educação, o alto custo de vida, entre outras coisas. Nestes contextos surge uma esperança de um mundo melhor, de governos que tomem em conta a vontade da população, a retomada de valores humanos que considerem o bem comum e as necessidades comuns, e a esperança de superação de uma massa antes “anônima”, que agora sai às ruas e luta por direitos.

Segundo Jaspers, a “unificação planetária”, o que Morin nomeia como “mundialização”, produziu um nivelamento, um aplainamento e uma generalização que levou à superficialização das coisas, à indiferença e à nulidade das mesmas. Tudo isso não levou, no entanto, a uma comunicação autêntica entre as diferentes culturas e os diferentes saberes. O sentimento que se adianta é de que o vasto mundo está estreito e limitado. Os vínculos se desfazem e “nota-se hoje uma perda da insubstituível substância contínua, impossível de estancar”.16

O modo de organização da existência e suas conseqüências

Jaspers alerta que em cada época da história o ser humano sofre uma decadência, olha para o passado e de longe vê o que foi perdido. Menciona Ranke e um trecho do seu diário, de 1840, onde diz: “antigamente as grandes convicções eram coletivas e nessa base se procurava ir cada vez mais longe. Hoje tudo se reduz a uma espécie de pronunciamento e nada mais”. E continua com a menção de Ranke que conclui dizendo que hoje “nada prevalece, tudo se perde. Quem quiser abrir caminho terá de falar a linguagem de um partido e agradar-lhe”.17

Estas palavras sobre os sentimentos acerca de um tempo e sobre o espírito de um tempo ditas há mais de um século e meio atrás são muito ilustrativas, pois nos dão a ideia de certa percepção dos limites das estruturas políticas e sociais e de um esfacelamento das estruturas morais que sustentavam a sociedade. Estas considerações nos soam atuais, ou seja, servem para pensar sobreo tempo atual. Se consideramos a mundialização da cultura, das informações produzidas pela mídia hegemônica que a toda hora prenuncia alguma decadência, sinalizando o domínio da violência gerando medo, instabilidade, insegurança o que prevalece é a sensação de um mal-estar generalizado, sendo que a substância humana fundamental parece perder-se mais e mais.

Já no século XIX, segundo Jaspers, o tempo foi abalado por um “sentimento de perigo”. Desde então, o ser humano “sente-se ameaçado”. Para exemplificar, o autor se referencia em Hegel dizendo que diante do “desmoronamento da época” reconhece que é necessário conciliar tanto a filosofia quanto a realidade. Em seguida cita Grundvig, que quer um retorno ao cristianismo, e que diz: “O nosso tempo acha-se à beira de uma viragem, quiçá a mais importante da história; o que era velho desapareceu, e eis que o novo vacila sem poder libertar-se.”18 Na sequência Jaspers ainda se refere a Kierkegaard que postula um cristianismo original, o do início. De todo modo, para Jaspers,

…uma consciência se difunde, a de que tudo fracassa, a de que tudo é incerto, movediço, que nada de fundamental é suscetível de prova; é uma vertigem sem fim que se projecta em recíprocos logros e ilusões nascidas de movimentos ideológicos. Solta-se a consciência da época do ser para se debruçar sobre si própria. Quem assim pensa sente-se a si mesmo como nada. A sua consciência do fim é simultaneamente a do nada do seu próprio ser. Ora, solta do tempo, a consciência deu uma cambalhota. 19

No texto Rumo ao abismo? –escrito em 2011–, Edgar Morin se refere aos processos que tem como mote o “progresso humano” e que trazem, por um lado, progressos locais e possíveis progressos futuros e, por outro, trazem também “perigos mortais” para toda a humanidade. São desenvolvimentos que chegam a produzir verdadeiras regressões, diz o autor. Regressões tão graves que remetem à volta à barbárie.

O autor cita o progresso científico que produziu armas de morte químicas ou biológicas que podem matar em massa; o progresso técnico e industrial que levou à degradação da biosfera; a mundialização do mercado econômico sem autorregulação ou regulação exterior que levou aos extremos de riqueza e de pobreza. Esta mundialização, segundo Morin, provocou e provocará crises sucessivas e seu avanço se apresenta em forma de caos. Ademais, a questão se agrava porque os campos da ciência, da indústria, da técnica e da economia não tem regulação política, ética ou do pensamento.

Para Morin, duas barbáries estão aliadas com força no momento atual, a velha barbárie –cheia de ódio, destruição, morte, com as mais diversas motivações no campo das nações, religiões, étnicas ou civis, e a barbárie tecnicista–do cálculo que não toma em conta a dimensão humana do ser humano, com sua história, seu sofrimento, sua vida, seus sentimentos.

Para o autor, há um avanço dos processos regressivos, que pode estar relacionado com um feedback positivo desintegrador, verdadeiras retroações desintegradoras, estreitamente vinculadas com a retroação positiva do quadrimotor ciência – técnica – indústria – economia. A aliança entre as barbáries de eras históricas com a barbárie hostil e sem rosto da técnica na civilização atual é capaz de destruições ainda não exatamente evidentes para a humanidade, mas mostram-se como ameaças claras.

Por um lado, os sinais de algo não vai bem são agudos e até crônicos. Poroutro lado, a diversão, a distração promovida pela indústria do entretenimento é tão acachapante que temos que refletir com mais elementos se não há uma verdadeira inconsciência sobre o “espírito deste tempo”. Segundo Frankl20, o refúgio em divertimentos baratos está relacionado à frustração da vontade de sentido. Ou seja, a hipótese de uma consciência maior de um tempo são apenas os sinais visíveis manifestos nos sintomas que sinalizam para uma profunda decadência do espírito humano.

Para o francês Félix Guattari, em seu livro As três ecologias, publicado nos anos 1990, ao lado das grandes transformações protagonizadas pelas sociedades humanas nesta era, a humanidade assiste a grandes desequilíbrios, seja no meioambiente natural, social, cultural ou subjetivo (interno). Guattari aponta que

…os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra freqüentemente ‘ossificada’ por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão reduzidas a sua mais pobre expressão. 21

Há evidências de uma sensação de mal-estar no tempo atual quando no senso comum se ouve queixas de que não há mais estruturas fundamentais que orientem o ser humano sobre o seu ser e o seu fazer; quando se questiona sobre o papel da família tradicional e as consequências de sua desestruturação, bem como o fracasso do modelo de casamento, do modelo de educação formal, a corrupção na política, o fracasso das religiões tradicionais em seu papel moralizador.

Estes questionamentos estavam presentes com certa força no final do século XX, mas há indícios de que no século XXI há um declínio da força de questionamento sobre as razões destas mudanças e a volta ao inconsciente. O excesso de uso de drogas, entorpecentes, antidepressivos, pelo menos no caso brasileiro22, maior mercado de remédios para dormir do mundo, tanto indicam para uma frustração, como para uma decadência da força de reflexão, e de criação de uma nova realidade.

Jaspers chama à atenção para o movimento da humanidade de regresso de uma situação de maior consciência ao inconsciente. Um grito se ouve, diz o autor, e a volta ao inconsciente significa a volta ao “inconsciente do sangue, da fé, da terra, da alma, da história e do mistério”. O retorno da religião é uma das características desta volta ao inconsciente, pois “no fundo incrédulo, o homem procura, à força, acreditar, destruindo, para tal, a consciência”. 23

Tal grito constitui um logro. O homem carece, para continuar homem, de permanecer na consciência. […]. A vulgar existência, que tudo encara como possível de conhecimento e de finalidade prática, terá que ser ultrapassada por um honesto, autêntico labor filosófico, mediante a sintaxe límpida de todos os modos da consciência. Não é possível disfarçar, renunciar à consciência, sem se excluir a si próprio do processo histórico da humanidade. 24

[ … ]

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Pie de página

1 Morin, Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, 93.

2 Bello, Introdução à fenomenologia, 41.
3 Ibid., 34.
4 Morin, Rumo ao abismo?
5 Ibid., 21.

6 Ibid.
7 Ibid., 23.
8 Verificaremos ao longo da reflexão que não é possível fazer uma cisão clara entre a modernidade e a época que se segue a esta era. O fenômeno que será denominado de mundialização por Morin (Rumo ao abismo?) e que segue ou supera a modernidade mostra que ele será em algumas situações um aprofundamento ou agravamento do que se verificou na modernidade –mundializando fenômenos, generalizando– os e dando a real sensação de uma crise de estruturas, valores, instituições.

9 Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 10.
10 Ibid., 49.

11 Ibid., 50.
12 Morin, Rumo ao abismo?, 27.

13 O ser-si-próprio se constrói a partir da relação com o mundo circundante e o mundo humano fazendo as apropriações pessoais desta relação dinâmica na qual o ser vai se autotranscendendo à medida que toma consciência de si e da sua relação com a realidade.
14 Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 127.

15 Ibid., 123-124.

16 Ibid., 126.
17 Ibid., 23.

18 Ibid., 25.
19 Ibid., 27.

20 Frankl, Em busca de sentido.
21 Guattari, As três ecologias, 1.

22 Matéria publicada na revista Super interessante do mês de julho de 2010, intitulada “Nação Rivotril”, mostra que o Brasil é o maior consumidor deste calmante de tarja preta do mundo. A matéria mostra que o remédio é prescrito por médicos para crises de ansiedade, mas é suado para dar conta das pressões do dia a dia como insônia, conflitos nos relacionamentos, etc. A matéria também revela que o Brasil é o maior consumidor de clonazepan, princípio ativo do rivotril, do mundo. A previsão para 2010 era de que naquele ano seriam consumidas 2,1 toneladas de clonazepan no Brasil (Versolato, “Nação Rivotril”, http://super.abril.com.br/saude/nacao-rivotril-587755.shtml, Super interessante [acesso em 15 mai, 2013]).
23 Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 221.
24 Ibid., 221.

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