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Resenha: Cristianismo primitivo e paideia grega / Werner Jaeger

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Trad. Daniel da Costa.  Santo André (SP): Academia cristã, 2014 (128p)
Fonte: Último Andar, (28), 318–323.

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Resenha: Cristianismo primitivo e paideia grega / Werner Jaeger.

Luís Gabriel Provinciatto

1 Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), mestrando em Ciências da Religião pela mesma instituição com bolsa de fomento CAPES. lgprovinciatto@hotmail.com

(Cristianismo primitivo y paideia griega / edición en español)

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O que se encontra na obra Cristianismo primitivo e Paideia grega de Werner Jaeger não é uma longa elucidação aos moldes de sua primorosa obra Paideia: a formação do homem grego, mas tão somente alguns pontos fundamentais para compreender o encontro de dois grandes sistemas culturais, a saber: o cristianismo em seus primeiros passos e a cultura grega amplamente difundida. Isso, no entanto, não desqualifica a obra, pelo contrário: a sutileza, cuidado e qualidade de escrita desenvolvida por Jaeger neste texto revelam sua enorme capacidade elucidativa, além de proporcionar ao leitor a possibilidade de investigações posteriores, dadas algumas indicações que aparecem, mesmo que implicitamente, ao longo da escrita.

Destaca-se, a princípio, que esta resenha se justifica visto que há pouco tempo foi publicada uma tradução brasileira da referida obra (2014), embora haja outra tradução publicada pela Edições 70 (2002) de Portugal. Não se pode deixar de mencionar que há algumas mudanças entre as publicações: a versão brasileira contém um sumário que traz um título para cada capítulo, o que não há na outra versão; há ainda dois índices ao final desta edição: um de assuntos e outro de autores. Tudo isso facilita a incursão, por parte do leitor, em trechos específicos da obra. No entanto, o que aqui se pretende não é comparar ambas as traduções, mas apresentar o conteúdo da obra e suas peculiaridades. Permitem-se, desde já, possíveis indicações de pesquisas posteriores, uma vez que o próprio Jaeger, durante o Prefácio, adverte para o fato de que esta obra é um “pequeno” contributo devido aos descobrimentos que estão acontecendo sobre este período histórico.

Diante dessa indicação feita pelo próprio Jaeger surge uma nova problemática: a dificuldade de classificação desta obra, já que ela faz um jogo com elementos históricos, filosóficos e teológicos que, no período referido, estavam em constante entrecruzamento. Esse elemento merece destaque por mais que Jaeger, logo no primeiro capítulo, advirta para a abordagem histórica que será feita. Não é demasiada ousadia, então, afirmar que uma das intenções deste ensaio é, na medida do possível, colocar o leitor em contato com essa movimentação própria aos primeiros séculos de desenvolvimento da cultura ocidental amplamente marcada pelo raciocínio e pelo cristianismo.

De modo objetivo, a obra está dividida em sete capítulos seguidos de uma curta conclusão. A seguir serão apresentadas as temáticas próprias de cada capítulo acompanhadas, quando se julgar necessário, de pequenas incursões críticas, elucidativas ou indicativas. Faz-se menção ainda à importância que as notas de rodapé têm ao longo de todo o trabalho. De fato, muitas delas contêm ricos apontamentos acerca de outros trabalhos históricos, filosóficos, teológicos e, raras vezes, sociológicos, além de facilitarem a compreensão de alguns termos, pois Jaeger busca sempre a etimologia da palavra e sua inserção histórica. Com o desenvolver da obra e o aparecimento de autores clássicos do cristianismo primitivo, as notas também assumem a função de indicar passagens de textos clássicos que direcionam o leitor a tais textos, possibilitando uma maior abrangência de conteúdo. Constata-se desde já que as notas assumem papel fundamental ao longo de todo o texto, pois lhe dão especificidade, qualidade e rigor.

O trajeto feito pelo primeiro capítulo é de suma importância para se compreender o posterior desenvolvido quer da obra quer do próprio cristianismo em si, uma vez que Jaeger parte da cultura grega, caracterizando-a brevemente em sua origem, para depois colocá-la em contato com o cristianismo nascente. Percebe-se a preocupação do autor em apresentar, mesmo que nas entrelinhas, o processo de helenização do cristianismo e de cristianização do helenismo, por mais que hoje em dia possam ser levantadas algumas questões sobre esse processo. O livro dos Atos dos Apóstolos aparece com grande frequência; não sem justificativa: esse livro bíblico possui passagens que mostram o contato do cristianismo com a cultura grega, como, por exemplo, a presença de Paulo no Areópago (At 17, 16-34). Nesse sentido, nota-se uma superação da Paideia grega, pois, ao apresentar o cristianismo como a Paideia de Cristo, o autor dos Atos dos Apóstolos intencionalmente faz da Paideia grega um instrumento para o crescimento da religião cristã nascente.

Essa relação entre o cristianismo primitivo e a cultura grega é acentuada no segundo capítulo quando Jaeger apresenta a carta escrita por Clemente à comunidade de Corinto, o documento mais antigo da cristandade após a era apostólica, na qual as cartas paulinas, os evangelhos e os atos dos apóstolos foram escritos. Da Carta de Clemente interessa o vigésimo capítulo, pois nele está descrita uma possível maneira de organização do cosmos, tendo o Deus cristão como princípio fundamental. Vale ressaltar que a descrição feita por Clemente estava muito próxima da organização proposta pelos próprios gregos, donde decorre a afirmação, por parte de Jaeger, de que não há propriamente uma “catequese”, mas sim uma Paideia, uma “indicação de caminho” que possui Cristo como centro. Além disso, Clemente alertou para o seguinte fato: as comunidades primitivas cristãs, para se fortalecerem, deviam seguir “uma disciplina interna similar àquela dos cidadãos de um Estado bem organizado permeado por um espírito comum a todos” (JAEGER, 2014, p. 28). A conclusão que Jaeger tira, após apresentar algumas outras características da Carta de Clemente, é que a cultura grega, juntamente com sua filosofia, não tomou contato com o cristianismo somente para lhe dar um corpo dogmático forte; ela foi um elemento que desde o princípio encontrou-se de modo muito prático com o cristianismo, sendo, de fato, inseparável deste.

Essa caracterização é alvo de discussão do terceiro capítulo da obra, no qual o autor mostra que o interesse não foi somente do cristianismo para com a cultura e filosofia gregas. Há um movimento bilateral, pois a cultura grega viu no cristianismo elementos filosóficos que já haviam sido discutidos pelos filósofos antigos. Justificando sua argumentação, Jaeger traz o exemplo de Fílon de Alexandria. Com isso, o texto aborda o segundo século da era cristã com maior propriedade. Este século foi marcado pela discussão de temas recorrentes à filosofia grega: ética, cosmologia e, de acordo com o próprio Jaeger, teologia. Deve-se ter claro que a distinção nítida entre fé cristã e razão como atitude filosófica grega foi realizada no final do segundo século com Tertuliano, que não era de origem grega. No entanto, inegável a conclusão de que havia um amálgama constituído entre cultura, filosofia grega e cristianismo primitivo, tanto é que o próximo passo desse contato foi justamente a tradução dos originais bíblicos para o grego.

O quarto capítulo inicia-se justamente com essa temática: a tradução realizada foi uma primeira tentativa de se chegar ao significado das palavras originais, ou seja, de querer adequar o vocabulário grego ao entendimento hebraico (judaico-cristão). Nesse sentido, não aconteceu somente o processo de tradução, mas de interpretação, os termos e as palavras utilizadas ganharam novo significado. Jaeger destaca o fato de inexistir a possibilidade de conceber ambas as culturas como coisas distintas nesse momento histórico.

Na verdade, o cristianismo quis se utilizar da cultura, da filosofia grega e esta quis se utilizar daquele. A justificativa é simples: “havia uma unidade última e um núcleo comum de ideias entre eles” (JAEGER, 2014, p. 53). Este capítulo serve ainda como ponto de virada do trabalho, pois há aqui a apresentação de algumas escolas filosóficas que olharam para a filosofia grega com um viés religioso, como, por exemplo, o estoicismo e o epicurismo. Interessante mencionar que, de acordo com o próprio autor, essa guinada na mirada à filosofia grega já significava um decaimento, dado que a filosofia grega não surgiu nem se desenvolveu com interesses estritamente religiosos.

Esse fato, porém, serve como porta de entrada para a abordagem do terceiro século da era cristã, no qual se destacaram, principalmente, duas figuras: Clemente de Alexandria e Orígenes. Tais pensadores estavam situados na Escola de Alexandria, centro do mundo intelectual, responsável por empreender a distinção entre uma leitura “literal, histórica e espiritual” dos textos sagrados. Deve-se ter em conta a diferença no estilo de interpretação que havia entre ambos os autores: Orígenes empregou uma leitura alegórica dos textos sagrados, enquanto que Clemente estava mais próximo dos Apologistas. Jaeger aponta que se pode compreender Orígenes como sendo um “espírito grego tardio”, dado que este autor deu prioridade ao rigor conceitual. Clemente de Alexandria, por sua vez, propôs Cristo como pedagogo da fé. A filosofia, a partir do entendimento de Clemente, passou a ser entendida como uma propaideia da teologia cristã, ou seja, o desenvolvimento racional proporcionado pelos gregos serviu de propedêutica para o pensamento cristão.

O quinto capítulo ainda merece destaque por situar a diferença entre a Paideia propriamente aos moldes gregos e aquela desenvolvida pelo cristianismo: a Paideia cristã não teve seu centro em Jesus como um mestre humano, mas como Logos encarnado de Deus, como o próprio Deus. Essa vinda do Logos ao homem revelou a iniciativa divina e não puramente o esforço humano, característica decisiva da Paideia grega. Desenvolver uma Paideia cristã, então, era cumprir gradualmente a providência divina. Jaeger, infelizmente, interrompe esta discussão, não apontando as consequências teológicas desta apropriação, e parte para o sexto capítulo. Complementa-se aqui este capítulo mostrando a importância, por exemplo, do Evangelho de João para a construção da Paideia cristã que possui o Logos encarnado como centro, sendo que neste evangelho o Cristo já é apresentado como Logos divino.

O sexto capítulo, por sua vez, trata, num primeiro momento, do reconhecimento político do cristianismo por parte do Império Romano, além de mostrar a importância da constituição de uma matriz cultural da religião cristã. A “vitória política” do cristianismo deve ser colocada ao lado do desenvolvimento intelectual e artístico como os principais fatores que contribuíram para sua difusão, desenvolvimento e fortalecimento. No mesmo capítulo ainda é feita uma abordagem sobre o modo como a religião cristã foi recebida no Oriente, sobretudo a partir da figura dos padres da Capadócia, com destaque para Gregório Nazianzeno. A intenção de Jaeger, com isso, é mostrar que a cultura grega e o cristianismo foram recebidos de modo distinto pelos orientais em relação aos do mundo latino (ocidentais): o ocidente produziu intelectuais cristãos aos moldes gregos do raciocínio ao passo que os orientais transformaram esse contato numa nova cultura. A figura de Gregório Nazianzeno aparece justamente para exemplificar esse novo ambiente cultural proporcionado pela recepção oriental do cristianismo e da própria cultura grega.

O último capítulo centra-se sobre outra figura decisiva do cristianismo primitivo: Gregório de Nissa. O recorte feito por Jaeger sobre os escritos de Gregório de Nissa serve justamente para ainda atender às finalidades de justificar uma Paideia cristã. Jaeger aponta para uma semelhança entre a ideia de Paideia presente no autor cristão e aquela presente em Platão: a educação do homem deveria ser guiada. No entanto, a diferença entre ambas está no fato de que o cristianismo alcançou outro entendimento da complexidade da vida interior do homem e do modo de alcançar as virtudes. O seguinte trecho ilustra isso: “a virtude cristã descrita por Gregório aparece praticamente inatingível a qualquer um sem a ajuda divina […] Esse passou a ser para ele o ponto no qual o conceito especificamente cristão da graça divina poderia ser introduzido no esquema da paideia clássica” (JAEGER, 2014, p. 105). Desse modo, torna-se possível afirmar que a forma da Paideia cristã, de acordo com Gregório de Nissa, é Cristo e cabe ao fiel ser imitador de Cristo, pois este é, enquanto educador aos moldes da Paideia, Logos divino. Este último autor trabalhado por Jaeger cumpre ainda um papel fundamental dentro desse processo de via dupla entre cristianismo primitivo e cultura grega: a forma grega foi mantida, o conteúdo, porém, foi totalmente modificado; e isso está caracterizado no pensamento de Gregório de Nissa, daí sua importância.

As palavras finais do autor não apontam para conclusões tiradas a partir deste ensaio por ele produzido, estas se encontram difundidas entre os capítulos. Ao contrário, Jaeger se preocupa em incentivar o leitor a seguir um rico campo de investigação, dado que o modo como a Paideia grega afetou o mundo latino diz respeito ainda ao mundo contemporâneo. O autor aponta diretamente para a importância eminente de prosseguir o estudo por ele proposto em Cristianismo primitivo e paideia grega levando em consideração os Padres do quarto século da era cristã.

Ao final desta obra, à qual se recomenda a leitura, o leitor, provenha ele da história, teologia, filosofia, ciências da religião, sociologia, sente-se provocado a continuar o caminho de pesquisa iniciado por Jaeger justamente por ver-se lançado neste entrecruzamento cultural do qual provém um vasto campo de pesquisa ainda a ser desdobrado, problematizado e investigado.

[Provinciatto, L. G. (2016). ´CRISTIANISMO PRIMITIVO E PAIDEIA GREGA´ – (Werner Jaeger). Último Andar, (28), 318–323. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/ultimoandar/article/view/29799]

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