Uma sociedade ávida pelo Ter
Fonte: Alexandria: Revista de Educação em Ciência e Tecnologia. V.5, n.1, p.227-230, maio 2012 ISSN 1982-153. Alexandria está licenciada com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional.
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Uma sociedade ávida pelo Ter
Walter Antonio Bazzo
Sempre que estou discutindo a relação entre ciência, tecnologia e sociedade torna-se cada vez mais claro, para mim, que a diferenciação filosófica entre TER e SER precisa ser entendida na sua profundidade. Para isso fui a busca de várias leituras e, dentre elas, destaco um livro de Erich Fromm de onde extraio esta “pérola” para esta edição de nossa revista.(1)
“Como introdução ao entendimento da diferença entre os modos de ter e ser de existência, tomo como ilustração dois poemas de conteúdos semelhantes, que o falecido D.T. Suzuki mencionou em ‘Conferências sobre o Zen Budismo’. Um deles é um haiku de Basho, poeta japonês que viveu de 1644 a 1694; o outro poema é de um poeta inglês do século XIX, Tennyson. Cada um desses poetas alude a experiência semelhante: sua reação diante de uma flor que vê durante uma caminhada. Os versos de Tennyson são:
Flor nascida nas fendas de um muro,
Arranco-te e a raiz da fenda em que estás
E te contemplo toda, em minha mão.
Pequena flor – se eu entendesse
Quem és, raiz e pétalas, flor inteira,
O mistério de Deus e do homem eu saberia.
Traduzindo de maneira mais livre, o haiku de Basho seria assim:
Olhando eu cuidadosamente,
Vejo o nazuna florindo
Em meio à sebe!
A diferença é contundente. Tennyson reage à flor querendo tê-la. Ele ‘arranca-a’ ‘com raiz e tudo’. E não obstante conclua com uma especulação intelectual sobre a possível função da flor quanto a lhe dar a intuição sobre a natureza de Deus e do homem, a flor mesma é morta em consequência do seu interesse nela. Tennyson, como vimos neste poema, pode ser comparado ao cientista ocidental que procura a verdade mediante o desmembramento da vida.
A reação de Basho diante da flor é totalmente diferente. Ele não quer arrancá-la; não pretende nem mesmo tocá-la. Tudo o que ele quer é ‘olhar cuidadosamente’ para ‘vê-la’. Eis a interpretação de Suzuki:
‘É provável que Basho estivesse passando por uma senda campestre quando deparou com alguma coisa um tanto desprezada em meio à sebe. Chegou-se então mais perto, deu uma olhadela, e verificou que era nada menos que uma planta silvestre, muito insignificante e em geral despercebida dos passantes. Tratase de um fato evidente relatado no poema, sem qualquer manifestação especificamente poética senão, talvez nas últimas duas sílabas que, em japonês, soariam Kana. Esta partícula, frequentemente aglutinada a um substantivo, adjetivo ou advérbio, significa certo sentimento de admiração ou louvor, tristeza ou alegria, e pode às vezes, muito adequadamente, ser traduzida por um sinal de exclamação. No presente haiku, todo o verso termina com este sinal’.
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(1) Fragmentos das páginas 36, 37, 38 e 39 do livro Ter ou Ser de Erich Fromm. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1980.
Tennyson, como se vê, precisa possuir a flor a fim de entender as pessoas e a natureza, e ao tê-la, a flor é destruída. O que Basho quer é ver, e não apenas olhar para a flor, mas identificar-se, ser uno como ela, e deixa-la viver. A diferença entre Tennyson e Basho é plenamente explicada neste poema de Goethe:
DESCOBERTA
Andava eu pelo bosque
Inteiramente só,
Ao léu, por nada
Pensar ou querer.
E percebi na sombra
Uma florzinha só,
Clara como as estrelas
Ou dois olhos brilhantes.
Fiz menção de arrancá-la,
Quando a ouvi dizer, suavemente:
Será para que eu morra
Que devo ser quebrada?
E tirei-a do chão
Com todas as raízes
E ao jardim conduzi
Para junto do lar.
E de novo a enterrei
Num traquilo lugar
Onde ela vive e cresce
E está sempre florindo
Goethe, andando a esmo, despreocupadamente, é atraído pela florzinha brilhante. Narra ter sentido um impulso que era o mesmo como o de Tennyson: arrancá-la. Mas, diferentemente de Tennyson, Goethe se apercebe de que arrancá-la seria matar a flor. Porque, para Goethe, a flor vive de tal modo que fala e o adverte; e ele resolve o problema diferentemente de Tennyson ou Basho. Ele pega a flor, ‘com todas as raízes’, e planta-a de novo de modo que sua vida não seja destruída. Goethe situa-se, como de fato estava, entre Tennyson e Basho: para ele no momento crucial, a força da vida é mais forte que a força da mera curiosidade intelectual. Evidentemente, neste belo poema Goethe exprime o núcleo de seu conceito de natureza inquiridora.
O relacionamento de Tennyson com a flor está no modo de ter, ou posse – não posse material, mas de conhecimento. O relacionamento de Basho e de Goethe está no modo de ser. Entendo por modo de ser de existência aquele em que nem se tem nada, nem se anseia por ter alguma coisa, senão o emprego das faculdades produtivamente, alegre, numa identificação com o mundo.
Goethe, o grande amante da vida, um dos mais notáveis lutadores contra o desmembramento e mecanização da humanidade, exprimiu o ser em vez de o ter em muitos de seus poemas. O seu Fausto é um relato dramático do conflito entre ser e ter (este último representado por Mefistófeles), enquanto no poema seguinte le exprime a qualidade de ser com a mais perfeita singeleza:
PROPRIEDADE
Sei que nada a mim pertence
Senão o pensamento que, liberto,
De minha alma fluirá.
E todo momento feliz
Que bem no fundo
Me deixe gozar
O bom destino.
A diferença entre ter e ser não é fundamentalmente uma questão de Oriente e Ocidente. É, isto sim, uma diferença entre uma sociedade centrada em torno de pessoas e outra centrada em torno de coisas. A orientação no sentido do ter é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama e poder tornou-se tema dominante da vida. Sociedades menos alienadas – como a sociedade medieval, a indiana zuni, as sociedades tribais africanas que não foram afetadas pelas ideias modernas de ‘progresso’ – têm também seus Bashos. Talvez, após mais algumas gerações de industrialização, os japoneses venham a ter os seu Tennysons. Não é que o homem ocidental seja incapaz de compreender os sistemas orientais, como o Zen Budismo (como Jung pensava), mas o homem moderno é incapaz de compreender o espírito de uma sociedade que não esteja centrada na propriedade e na avidez. Na verdade, os escritos de Mestre Eckhart (tão difíceis de compreender como Basho ou Zen) e os de Buda são apenas dois dialetos de uma mesma língua.”
Toda vez que me deparo com estas leituras renovo minha concordância com Snow – As duas culturas e uma segunda leitura – onde ele diz que só chegaremos a uma harmonia em relação ao conhecimento quando unirmos as áreas das humanas com as tecnológicas e quando tivermos claro a maior importância do ser em relação ao ter. Enquanto isso não acontecer, qualquer outra tentativa me parece devaneio.
Walter Antonio Bazzo
Janeiro de 2012
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